Uma das críticas mais frequentes que se faz à fantasia escrita em Portugal é inspirar-se em demasia em modelos estrangeiros. Em Tolkien, para começar, mas também em outros autores que dominam o mercado internacional, e em lendas e vivências que nos são alheias, de origem anglo-saxónica, germânica ou nórdica. E é uma crítica que me parece válida, até porque, embora a fantasia portuguesa anterior ao boom da fantasia comercial de finais do século XX não seja propriamente bem conhecida (com a possível exceção de O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena, ou de A Dama Pé-de-Cabra, de Alexandre Herculano), ela existe. Mais: uma das principais inspirações da fantasia medieval, o romance de cavalaria, teve a sua origem precisamente entre nós, entendendo aqui "nós" no sentido de "Península Ibérica". Seria, portanto, de esperar que mais autores contemporâneos procurassem ler mais do que produziram os seus percursores em vez de se limitarem a importar e, eventualmente, adaptar.
Percursores como este Eduardo Augusto de Faria.
A Feiticeira do Douro é uma novela de fantasia já bastante vetusta, pois foi originalmente publicada há mais de cento e cinquenta anos. A história tem um ambiente medieval que só não é inteiramente banal porque para os leitores de fantasia de hoje os ambientes medievais típicos remetem para o norte da Europa e não para o norte de Portugal. Faria, como é óbvio, não se inspira em Tolkien e sucessores; antes faz o mesmo que estes autores fizeram, um século mais cedo, e vai beber diretamente às lendas da sua terra e aos cancioneiros.
Este livro, já o título o indica, passa-se na região do Douro, e centra-se numa velha bruxa que teria sido vítima de um hediondo crime passional muitas décadas antes e, depois de andar pelo mundo a alimentar o ódio, regressa para se vingar de quem cometeu o crime e da sua família, armada de feitiços.
Infelizmente, pese embora o pioneirismo, poucas qualidades encontrei em Faria e na sua prosa. Esta conta, claro está, uma grande tragédia, ao gosto romântico da época. Sentimentos superlativos e violentos, tiradas tonitruantes, muitos ohs, muita faca e muito alguidar. Quem sabe alguma coisa sobre os velhos clichés das histórias românticas cedo deduz todo o enredo quase aos mínimos detalhes, e Faria segue-o fielmente. Não é grande coisa como escritor, infelizmente, para não dizer que é francamente mau. Falta-lhe rasgo e sobra-lhe banalidade de ideias e de execução. E para piorar as coisas, os diálogos forçadíssimos de que faz uso talvez fossem ao gosto da época mas, pelo menos aos olhos deste leitor moderno, chegam a parecer ridículos. E há muitos, e confusos.
Em todo o caso há, ainda hoje, quem goste deste tipo de prosa. Há até quem a pratique. Portanto certamente haverá quem goste desde livrinho.
Mas eu não. Para mim, a maior curiosidade do livro residiu em algumas formas de organizar as frases, em expressões como "me faz", "me diz", esse tipo de coisa, que para a maioria dos leitores portugueses de hoje soa muito brasileira, mas não o é. É certo que Faria viveu no Rio de Janeiro (onde esteve envolvido numa série de falcatruas e de onde acabou por fugir para Londres), mas isso foi só depois de ter, em Portugal, malamanhado um dicionário de língua portuguesa, realizado um conjunto de traduções do francês que, ao que consta, eram horrendas, e escrito e publicado este livro. O homem era português, desonesto e incompetente, não necessariamente por esta ordem. Mas a forma de organizar as frases que muitas vezes apresenta tem, hoje, ressonância brasileira.
Curioso, não?
De resto, só encontrei no livro o inegável interesse histórico de mostrar que já em meados do século XIX se escrevia em Portugal fantasia de inspiração medieval. Fora isso... É um mau livro, com uma má história mal contada por um mau escritor. Está longe de ser o único. E mesmo sendo todas essas coisas pouco agradáveis poderia perfeitamente servir de base e inspiração para alguém mais competente criar algo de novo e decente. Para isso, contudo, seria necessário ser lido. E para isso seria preciso antes de mais nada estar mais disponível do que numa edição com vinte e tal anos, apenas possível de encontrar em alfarrabistas, geralmente a preços exorbitantes, em especial tendo em conta a exiguidade do volume e a fraca qualidade do que se encontra lá dentro.
Porque livros como este, sejam maus, sejam bons, sejam assim-assim, deveriam fazer parte da nossa memória coletiva enquanto povo. E para isso não podem estar trancafiados a sete chaves, especialmente nos tempos que correm, em que é demasiado fácil sermos invadidos pelo que outros produzem e distribuem vasta, fácil e tantas vezes gratuitamente. Evitaríamos ter de estar sempre a refazer experiências já feitas, a reinventar rodas que já se viu que tal funcionam. A acolher os outros com total ausência de referências próprias, apesar de estas existirem e até serem, por vezes (embora não desta), bastante melhores do que muito do que nos chega de fora.
Talvez um dia alguém pegue nesta história e a publique em ebook. Talvez um dia alguém leia o ebook e encontre nele material de base para desenvolver numa fantasia moderna mais sofisticada do que a romântica banalidade desta novela, ou pelo menos seja por ela levado a mergulhar nos cancioneiros em busca do nosso património lendário, que é bem menos pobre do que somos tantas vezes levados a supor, mesmo apesar da depredação causada por demasiados séculos de repressão inquisitorial e eclesiástica. Talvez um dia.
Texto republicado, com bastantes alterações, da Lâmpada Mágica (2011).
sexta-feira, outubro 25, 2013
Fantasia portuguesa antes de Tolkien: sim, existiu.
Em sexta-feira, outubro 25, 2013 por Jorge Candeias
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