A antologia O Que é a “Ficção Científica”?, organizada por Victor Palla e publicada em 1959 sob a chancela da editora Atlântida (Coimbra), contém os seguintes contos: «A Longa Velada de Armas» de Robert Heinlein, «Quem Parte Leva Saudades» de Jacques Sternberg, «Cidadão no Espaço» de Robert Sheckley, «Interlúdio nas Trevas» de Mack Reynolds e Frederic Brown, «Cair da Noite» de Isaac Asimov, «Senão» de Henry Kuttner, «Lição de História» de Arthur C. Clarke, «A Sombra do Passado» de Ivan Efremov, «A Descoberta de Morniel Mathaway» de Willam Tenn, «Noite» de Chad Oliver, sendo antecedidos por um prefário do organizador e seguidos também por um «postfácio» [sic] da sua autoria.
Transcrevemos na íntegra os textos de Victor Palla para efeitos de memória bibliográfica:
Prefácio
«Mas o sistema solar!» protestei.
«Que diabo me interessa isso?» interrompeu ele, impaciente. «Diz você que andamos à roda do Sol. Se andássemos à roda da Lua, isso não me faria a mínima diferença, nem a mim nem ao meu trabalho.»
Exteriormente, o fenómeno – que alastra pelos escaparates das revistas e livros de bolso – lembra dum modo flagrante o advento e a difusão, ainda relativamente recentes, dum outro fenómeno literário. Centenas de títulos são publicados anualmente; milhões de leitores ávidos devoram indistintamente tudo quanto aparece; outros escolhem, comentam e fundam clubes e tertúlias; o cinema aproveita a moda e produz filmes comerciais estupidamente aterrorizantes e aterrorizantemente estúpidos; aparecem revists populares da especialidade, e esotéricas little reviews; determinado tipo de intelectuais «não lê tal coisa»; políticos, homens de ciência, primeiras-damas confessam, um tudo-nada apologeticamente, que não têm outra leitura favorita, «para distrair o espírito».
Eis, não há dúvida, uma moldura singularmente parecida à do retrato que há um bom par de dezenas de anos se traçava do «livro policial».
Mas a impaciente resposta de Holmes ao bom do Dr. Watson define a diferença fundamental. Ao romance de polícias e ladrões tanto se lhe dá como se lhe deu que a Terra ande à volta do Sol, que se lancem satélites artificiais e bombas atómicas. A «ficção científica» faz de tudo isso (e de muito mais) o seu pão de cada dia. No mundo de regras fixas do romance policial, tudo o que esteja para fora do palco arrisca-se a perturbar grandemente um equilíbrio estático do jogo convencional, tão estático que tem vindo a condená-lo aos poucos à decadência e à morte – destino idêntico ao dos romances franceses de capa-e-espada ou dos Gothic novels ingleses. Em determinadas épocas da história literária aparecem estes subgéneros da ficção romanesca, muito caracterizados; por vezes simples «modas», eles são no entanto instrutivos – porque o êxito dum livro em grande escala é, evidentemente, fenómeno social e não literário. Ora tudo o que afecta milhões de pessoas merece ser conhecido, em vez de recusado sumariamente. Assim aparece este livro.
Ele não é, no entanto, um tratado sobre o assunto, nem uma História da Ficção Científica Desde as Suas Origens Até aos Nossos Dias. Apresenta, mais modestamente, uma dezena de contos, que se escolheram variados, e cuja leitura (e não os comentários do antologista) se espera que dê resposta à pergunta do título. Julga-se que será bem mais esclarecedor, para quem nunca leu f. c., este mergulho de cabeça nos labirintos do género, do que um longo e abstracto artigo teórico, ou, por outro lado, a leitura dum romance (que tem alta probabilidade de ser muito mau). Aqui encontrará o leitor problemas de exploração astral; especulações sobre o viajar no tempo; o desenvolvimento de hipóteses físicas; crítica social, sátira política; e humor à custa dos próprios poncifs da f. c.. Faltam-nos, é certo, robots, mutantes, telepatas; mas para que tudo figurasse seria necessário um bem maior volume. Também não aparecem alguns contos que o organizador gostaria de incluir, mas se encontram já traduzidos e acessíveis: recorda-se particularmente esse extraordinário «A Terra dos Cegos», de Wells (1), e muitas das histórias curtas do grande escritor que é Bradbury (2).
Houve, além disso, a prudência de evitar contos demasiadamente «especializados». Explico melhor: qualquer assunto tem a sua linguagem: um conto sobre um desafio de base-ball pode resultar (e resulta, num caso de que me estou a lembrar) ininteligível ao leitor europeu. A f. c., pela necessidade de empregar os nomes dos objectos e fenómenos não usuais, utiliza uma terminologia própria, cuja estranheza o aficionado já não nota, mas que poderá desorientar o iniciando. O que é um «escafandro espacial»? um «campo de forças»? E que línguas se falarão no futuro? é inevitável que surjam termos novos; que algumas palavras de hoje evoluam, se contraiam. E os hábitos quotidianos das personagens, não deverão ser também diferentes? «Ler» um livro poderá passar a ser encostar aos olhos um visor de microfilmes. O leitor calejado de f. c. dá tudo isto como assente e nem pestaneja quando em vez de um Presidente aparece um Presidor, ou quando uma personagem que estava a ler «pousa o aparelho de leitura». (Estes exemplos não são ao acaso: aparecem no livro.) Mais: esse leitor habitual de f. c. tem já os seus conhecimentozinhos, superficiais mas suficientes, da astrofísica, de astronavegação; e é com um pequeno sorriso de superioridade que assiste, desde o Sputnik à vaga de artigos nos jornais diários vulgarizando assuntos que ele conhece como os seus dedos há muitos, muitos anos. Pois não foi já em 1920 que ele leu Aelita, de Alexis Tolstoi, que narra a chegada a Marte da primeira expedição terráquea? Há dezenas de anos que a sua moeda corrente são os satélites artificiais, as condições de vida nos outros planetas, o aproveitamento pacífico (ou não) da energia nuclear, as grandes evoluções sociais. Não é em vão que, com toda a seriedade, os franceses propõem para substituir o termo ficção científica um outro, antecipação; e em abono da verdade reconheça-se que esta nova Cassandra tem, por conhecimento de causa, premonição, esperançoso wishfull Thinking, ou simples coincidência, muito frequentemente justificado o nome. Ora tudo isto (para voltar ao tema) implica um glossário específico. Os contos deste volume não escapam por completo a essa pressuposição de conhecimentos prévios do leitor. Mas todos os meios de expressão os pressupõem. Passemos portanto à leitura e deixemos para o fim quaisquer comentários adicionais.
(1) In «H. G. Wells», antologia do conto moderno, Atlântida.
(2) In Colecção «Argonauta», Livros do Brasil, Lda.
Postfácio
Eis portanto o que é «ficção científica». Se necessária uma definição, podemos arriscar esta: «narrativa baseada deliberadamente na especulação romanesca sobre as consequências principais ou acessórias duma ou várias hipóteses científicas, prováveis ou não.» Talvez ela seja insuficiente a quem não conheça o definido, como quase todas as definições. Ajusta-se, é certo, à bravura de Heinlein, ao negro pessimismo francês de Sternberg, à fácil sátira americana de Sheckley, à crítica implícita em Reynolds & Brown, à poética especulação de Asimov, à ironia de Kuttner, ao sólido humor britânico de Clarke, à curiosidade científica do soviético Efremov, à anedota de Tenn e ao sentido humano de Chad Oliver. Mas ao recapitular estes contos, o antologista deve confessar leamente que receia eles não dêem da f. c. uma ideia muito correcta. As suas preferências pessoais levaram-no a traduzir exemplos menos maus do que a produção média deste género, pintando assim um retrato lisonjeiro e favorecido. É verdade que um género literário tem o direito de ser julgado pelas suas melhores obras. Mas também é verdade que muitas das consideradas «melhores obras» da f. c. são – também elas como as piores – pobres de estilo e composição, repetitivas, e grande parte das vezes duma profundidade psicológica nula – por pertinentes que sejam os seus temas (profecias de destruição, terror da bomba atómica), e justos alguns dos seus postulados (necessidade de colaboração entre todos os homens, anti-racismo). Refiro-me, evidentemente, aos Van Vogt, aos Leinster, àqueles tomados como «profissionais» da f. c.; não às obras ocasionais doutros autores, como 1984 ou Brave New World. (E, no entanto, estes dois exemplos lembram-nos que belo veículo de exame e crítica não poderia ser o género, fossem os seus profissionais melhores escritores! Recordo um único grande romance: o Farenheit 451 [sic] de Bradbury.)
Mas é talvez demasiado cedo para tentar surpreender uma evolução em pleno curso. Como diz Brunetière, os géneros literários nascem, crescem, estiolam-se e morrem; às vezes transformam-se noutros superiores e mais diferenciados, como as espécies na teoria darwiniana da evolução. Não nos precipitemos, pois, num julgamento que só ao futuro compete. Bem possível é que desta bizarra mistura de convencionalismo esquemático e sensação à outrance, de interesse científico e pseudo-ciência, de pessimismo e esperança, surjam, em linha directa ou colateral, grandes e perduráveis obras. Entretanto, das que se vão publicando, melhores ou piores, não vem mal ao mundo – nem a quem tenha a suficiente curiosidade para lê-las.
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