Sendo esta minha primeira
colaboração para este blog, imaginei que seria oportuno escrever não
propriamente sobre a FC lusófona, mas sobre alguns aspectos da relação entre FC
e lusofonia. O mundo da FC é um universo em língua inglesa, entrelaçado ao
nosso de portugueses e brasileiros, mas ao qual dificilmente temos acesso
ativo. Somos apenas observadores, espectadores e compradores. Os mais
empolgados tornam-se fãs, divulgadores, entusiastas, aficionados, e em última
análise garotos-propaganda voluntários das editoras e dos estúdios. Mas é um
mundo onde se fala língua inglesa, como o mundo do rock. Tudo circula e se
energiza na ponte US/UK. O restante do mundo produz até coisas eventualmente do
mesmo nível, mas ninguém fica sabendo. FC brasileira ou portuguesa é como rock
turco ou argentino.
Para muitos leitores da minha geração a FC está inextricavelmente ligada à lusofonia, por obra e graça da Colecção Argonauta, que é um objeto de culto em nosso país. Devido a sua antiguidade, regularidade e escolha de títulos geralmente boa, impelia ao ato de colecionar propriamente dito. Conheci a Argonauta no número 55, Os Frutos Dourados do Sol de Bradbury, e daí em diante comecei a comprar tudo que encontrava pela frente. Isso fez com que para todos nós o vocabulário da ciência e da FC ficasse contaminado de protões, foguetões, fatos espaciais e outros termos portugueses.
A psicologia atual tem afirmado que textos literários de alto nível de estranheza (poesia surrealista dos anos 1920, por exemplo) fazem bem ao cérebro, certamente porque acionam todos os seus recursos para explicar o inexplicável. Os romances de FC da Argonauta eram cheios de palavras e construções estranhas que não sabíamos a quem atribuir, se aos portugueses, se aos nativos de Fomalhaut-450. Esse efeito de estranhamento verbal, essa sabotagem permanente das nossas categorias de pensamento consecutivo e de verbalização, esse ver-e-não-ver o que estava sendo dito, passou a fazer parte da FC. Voltei a ter essa sensação quando li a série do The Book of the New Sun de Gene Wolfe, cheio de arcaísmos preciosos e de termos inventados. Parecia um livro de Portugal traduzido ao inglês.
Essa prosa (fosse ela norte-americana, inglesa, não importa o quê) fazia da estranheza uma beleza a mais, como nesta inesquecível abertura de Ortog de Kurt Steiner (número 66 da Argonauta):
Se um indivíduo não é capaz de transpor um texto assim, jamais será leitor de FC. Quando li isto pela primeira vez, eu certamente não sabia o que eram “fetos arborescentes”, “humus”, “sigilário” (não sei até agora) e “lomba”. Pelo que me dizia respeito, bem poderiam ser invenções guimarãesrosianas do autor. Mas havia antes dessa questão a questão da sonoridade das palavras e do modo como pareciam fazer bem à frase, independentemente do que significavam.
E, para além desse impacto imediato de um jorro de palavras oscilando freneticamente entre o comum, o não-comum e o insólito total, havia o quê? As imagens poderosas da FC, feitas de palavras absolutamente anódinas: “moscas douradas do tamanho da palma da mão”, “máscara nocturna de três aplicações”. Duas expressões tipicamente FC, uma da natureza, outra da tecnologia, sendo uma delas fantástica mas capaz de ser evocada imediatamente, e a outra algo cuja natureza apenas se entremostra, deixando em aberto essas “três aplicações”, cuja natureza é um desse mil pequenos mistérios que um texto de FC vai semeando e em seguida respondendo, sem cessar. (Sem falar nesse “urro” que atrai o personagem: o perigo, o mistério, a consciência de uma ominosa presença.)
Um texto de FC brasileiro talvez traga um número semelhante de sustos e incertezas (e de eventual triunfo cognitivo ou prazer estético) a um leitor português. Porque são três, os idiomas que se misturam: os dois dos países e o do gênero.
Quem já traduziu FC do inglês para o português já deve ter experimentado uma frequente sensação de inadequação, de falta de sintonia entre dois vocabulários. Muitos termos compostos em inglês soam maravilhosamente, mas se transpomos diretamente seu sentido para nossa língua isso às vezes resulta numa fórmula impronunciável, ou pelo menos de aparência canhestra. Isso não quer dizer, porém, que boas saídas não podem ser encontradas. Gostaria de saber quem foi o primeiro a traduzir “bug-eyed monster” (“monstro de olhos de inseto”) por “monstro de olhos esbugalhados”, forma menos literalmente fiel mas mais auditiva e mais visual.
Se coçamos a cabeça e passamos uma noite em claro buscando um termo equivalente a “conceptual breakthrough” ou a “sense of wonder”, deveríamos dar nossa própria contribuição, com termos portugeses e brasileiros, para esse linguajar. Seria honroso termos um conceito cujo nome original – em português – fosse aceito pelo banco-de-dados do gênero, e tivesse que ser traduzido para a sua língua oficial. Não somente a ficção lusófona mas a crítica lusófona tem o direito, a possibilidade e o dever intelectual de contribuir com esse diálogo multicultural trazendo novas palavras e novas expressões.
Para muitos leitores da minha geração a FC está inextricavelmente ligada à lusofonia, por obra e graça da Colecção Argonauta, que é um objeto de culto em nosso país. Devido a sua antiguidade, regularidade e escolha de títulos geralmente boa, impelia ao ato de colecionar propriamente dito. Conheci a Argonauta no número 55, Os Frutos Dourados do Sol de Bradbury, e daí em diante comecei a comprar tudo que encontrava pela frente. Isso fez com que para todos nós o vocabulário da ciência e da FC ficasse contaminado de protões, foguetões, fatos espaciais e outros termos portugueses.
A psicologia atual tem afirmado que textos literários de alto nível de estranheza (poesia surrealista dos anos 1920, por exemplo) fazem bem ao cérebro, certamente porque acionam todos os seus recursos para explicar o inexplicável. Os romances de FC da Argonauta eram cheios de palavras e construções estranhas que não sabíamos a quem atribuir, se aos portugueses, se aos nativos de Fomalhaut-450. Esse efeito de estranhamento verbal, essa sabotagem permanente das nossas categorias de pensamento consecutivo e de verbalização, esse ver-e-não-ver o que estava sendo dito, passou a fazer parte da FC. Voltei a ter essa sensação quando li a série do The Book of the New Sun de Gene Wolfe, cheio de arcaísmos preciosos e de termos inventados. Parecia um livro de Portugal traduzido ao inglês.
Essa prosa (fosse ela norte-americana, inglesa, não importa o quê) fazia da estranheza uma beleza a mais, como nesta inesquecível abertura de Ortog de Kurt Steiner (número 66 da Argonauta):
O sol acabava de desaparecer por de trás dos fetos arborescentes. Do humus subia um vapor onde turbilhonavam moscas douradas do tamanho da palma da mão.
Dâl parou junto de um alto sigilário. Olhou a névoa vinda das profundezas vegetais e baixou para o rosto a máscara nocturna de três aplicações. Avançou então para a lomba, em direcção ao ponto donde parecia vir o urro.
Se um indivíduo não é capaz de transpor um texto assim, jamais será leitor de FC. Quando li isto pela primeira vez, eu certamente não sabia o que eram “fetos arborescentes”, “humus”, “sigilário” (não sei até agora) e “lomba”. Pelo que me dizia respeito, bem poderiam ser invenções guimarãesrosianas do autor. Mas havia antes dessa questão a questão da sonoridade das palavras e do modo como pareciam fazer bem à frase, independentemente do que significavam.
E, para além desse impacto imediato de um jorro de palavras oscilando freneticamente entre o comum, o não-comum e o insólito total, havia o quê? As imagens poderosas da FC, feitas de palavras absolutamente anódinas: “moscas douradas do tamanho da palma da mão”, “máscara nocturna de três aplicações”. Duas expressões tipicamente FC, uma da natureza, outra da tecnologia, sendo uma delas fantástica mas capaz de ser evocada imediatamente, e a outra algo cuja natureza apenas se entremostra, deixando em aberto essas “três aplicações”, cuja natureza é um desse mil pequenos mistérios que um texto de FC vai semeando e em seguida respondendo, sem cessar. (Sem falar nesse “urro” que atrai o personagem: o perigo, o mistério, a consciência de uma ominosa presença.)
Um texto de FC brasileiro talvez traga um número semelhante de sustos e incertezas (e de eventual triunfo cognitivo ou prazer estético) a um leitor português. Porque são três, os idiomas que se misturam: os dois dos países e o do gênero.
Quem já traduziu FC do inglês para o português já deve ter experimentado uma frequente sensação de inadequação, de falta de sintonia entre dois vocabulários. Muitos termos compostos em inglês soam maravilhosamente, mas se transpomos diretamente seu sentido para nossa língua isso às vezes resulta numa fórmula impronunciável, ou pelo menos de aparência canhestra. Isso não quer dizer, porém, que boas saídas não podem ser encontradas. Gostaria de saber quem foi o primeiro a traduzir “bug-eyed monster” (“monstro de olhos de inseto”) por “monstro de olhos esbugalhados”, forma menos literalmente fiel mas mais auditiva e mais visual.
Se coçamos a cabeça e passamos uma noite em claro buscando um termo equivalente a “conceptual breakthrough” ou a “sense of wonder”, deveríamos dar nossa própria contribuição, com termos portugeses e brasileiros, para esse linguajar. Seria honroso termos um conceito cujo nome original – em português – fosse aceito pelo banco-de-dados do gênero, e tivesse que ser traduzido para a sua língua oficial. Não somente a ficção lusófona mas a crítica lusófona tem o direito, a possibilidade e o dever intelectual de contribuir com esse diálogo multicultural trazendo novas palavras e novas expressões.