O sibilar das rajadas também cessou completamente. Parado sobre a face da terra, o ar era semelhante ao lençol do finado a quem recalcaram a gleba que o cobre, frio, úmido, pesado, sem ranger, sem o movimento, cosido sobre o peito, onde acabou o bater do coração e o arfar compassado dos pulmões.
Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuíssima foi avultando pouco a pouco, derramando-se pelo horizonte e repintando a abóbada imensa dos céus.
Depois, esse clarão sinistro reverberou na terra: as cimas agudas, dentadas, tortuosas, alvacentas das fragas marinhas tinham-se abatido e livelado, como os cerros informes de neve amontoada, que, derretidos nos primeiros dias do estio, vão, despenhando-se, formar um lago chão e morto na caldeira mais funda do vale fechado.
Tudo a meus pés era um plano uniforme, ermo, afogueado, como a atmosfera que pesava em cima dele: e, além, jazia o cadáver do mar.
Eu, o Silêncio e a Solidão éramos quem estava aí!
Parece estranho iniciar a participação neste espaço com um romance aparentemente afastado das ficções científicas, especulativas e fantásticas. Tem o seu quê de provocação. Alexandre Herculano tem obras que se inserem mais facilmente nestes géneros do que esta, como se observa pelos contos coligidos nos dois deliciosos volumes de Lendas e Narrativas com o seu um manancial de histórias fantásticas. Escolhi recordar este Eurico o Presbítero pela capacidade que este livro algo esquecido tem de transcender géneros, mergulhando o leitor numa ficção medievalista escrita com precisão histórica, descrita numa linguagem vívida. O que nos livros de história são parágrafos com uma certa aridez ganha nas mãos de Herculano inegável força narrativa. O facto histórico, mitificado pela imaginação do autor, ganha vida nestas páginas.
Na continuidade temporal das ficções dos géneros fantásticos o romance de aventura, pulp, histórica ou rocambolesca, tem sido uma constante. Hoje géneros como o capa e espada ou a gesta cavalheiresca estão esquecidos ou encontraram nova encarnação nas fantasias medievalistas, mas o seu papel de influência histórica reflecte-se nos temas e estruturas narrativas do género. Herculano está firmemente inserido no cânone da grande literatura portuguesa, afastado pelo nosso carácter periférico desta linha contínua de influências que vai dos romances medievais aos autores contemporâneos de fantasia passada em mundos fantásticos de sabor medieval. Os seus romances históricos, dos quais este é talvez o mais fascinante, partilham da mesma fonte que animou Walter Scott. Este poderia dar um belíssimo filme. É um romance cavalheiresco sem elfos e orcs, mas cairia perfeitamente dentro do imaginário cinematográfico à volta do qual rondam filmes como O Senhor dos Aneis, Tróia ou Alexandre. Filmes exaltantes, onde as emoções de antanho, quer da antiguidade real ou imaginária, se recontam em imagens apaixonantes.
Alexandre Herculano foi uma das figuras maiores do século XIX português. Escritor e historiador, também se distingiu pela sua participação nas convulsões políticas da atribulada primeira metade do século XIX. Como romancista insere-se no romantismo, corrente literária que galvanizou a Europa do século XIX e que introduziu em Portugal através dos seus romances históricos. Estes são uma extensão lógica do seu trabalho como historiador, distinguindo-se pelo seu rigor histórico e carácter profundamente medievalista. Herculano buscava as raízes da portugalidade, procurando a confluência histórica dos primeiros tempos da nação, mitificando-a através da sua prosa rebuscada e hiperbólica, típica do sturm und drang do cânone romântico.
- Cristo e avante! - bradaram os godos: e os esquadrões de Roderico precipitaram-se ao encontro dos muçulmanos. São como dois bulcões enovelados, que, em vez de correrem pela atmosfera nas asas da procela, rolam na terra, que parece tremer e vergar debaixo do peso daquela tempestade de homens. O ruído abafado e bem distinto do mover dos dois exércitos vai-se gradualmente confundindo num som único, ao passo que o chão intermédio se embebe debaixo dos pés dos cavalos. Essa distância entre as duas muralhas de ferro estreita-se, estreita-se! É apenas uma faixa tortuosa lançada entre as duas nuvens de pó. Desapareceu! Como o estourar do rolo de mar encapelado, tombando de súbito sobre os alcantis de extensas ribas, as lanças cruzadas ferem quase a um tempo nos escudos, nos arneses, nos capacetes.
Publicado em 1844 este romance histórico que vai beber a sua inspiração a uma época mais antanha do que a idade média portuguesa. A acção deste romance de perder o fôlego passa-se nos tempos da conquista árabe da península ibérica, com os reinos visigodos que se ergueram após o império romano a cederem perante a força das armas dos exércitos mouros.
Eurico, o Presbítero narra a torturada história de Eurico, presbítero de Carteia, pequena aldeia à beira daquele que é hoje conhecido como o penedo de Tárique. Este nem sempre foi um humilde e angustiado presbítero de paróquia isolada. Noutros tempos, mais gloriosos e luminosos, foi nobre e corajoso guerreiro ao serviço da coroa visigótica. A nobreza não lhe conferiu muitas posses e a sua paixão por Hermengarda, filha da alta nobreza goda é destruída pelo pai desta. De amores desfeitos, Eurico abandona a vida da corte e da espada, abraçando a vida eclesiástica. Este é um presbítero amargurado, que consome a sua dor interior em cânticos poéticos exaltados e em longo passeios pela paisagem selvagem dos rochedos de Gibraltar.
Algo se pressente no ar, os ventos de tempestade levantam-se. Uma onda abate-se sobre a Ibéria visigótica. Os exércitos árabes invadem a península, aliados a facções que disputam a coroa visigótica. No meio deste turbilhão de sangue e chamas, do refulgir das espadas e dos confrontos destruidores entre ferozes exércitos, Eurico pega em armas. Os anos de sacerdócio não lhe haviam apagado o amor pela pátria. Na sua hora de maior perigo não se recusa ao combate. Faz a sua aparição na mais decisiva das batalhas, Guadalquivir, onde o embate entre exércitos culmina numa aterradora derrota que faz cair o reino visigodo. Eurico é um misterioso cavaleiro negro, capaz de sozinho deter legiões mouras, e que vê desesperado a traição dos seus companheiros fazer cair a pátria pela qual tanto sangue derramou. Estes são factos históricos, aprendidos friamente nos bancos da escola, aos quais a mitificação de Herculano dá o sopro da vida, da grandeza, da traição, da violência e da morta em páginas de prosa grandiosa e apaixonante.
Séculos após a poeira apagar os traços das sangrentas batalhas, conhecemos a história e tradições herdadas da época árabe. Sabemos da queda dos reinos bárbaros às mãos mouriscas, das luzes da civilização do Al Andaluz, da queda desta às mãos dos reinos da reconquista cristã, saída directamente da resistência dos últimos nobres visigodos, refugiados nas altas serranias das Astúrias. Mas este é um romance desesperado, que nos conta a história dos derrotados. Eurico é um personagem da época, sublimemente retratado. Com a alma torturada pelo desgosto de amores, ainda acredita na sua pátria, mas cada novo embate, cada novo passo, trás consigo derrota e aniquilação de tudo o que sempre conheceu e admirou. À boa maneira dos personagens românticos, Eurico trilha o caminho entre a loucura e o desespero, enquanto se ergue contra vastas forças, maiores do que a pequenez da sua humanidade.
- Dez anos! ... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e, depois, desfechar do céu nas profundezas do nada? Sabes o que é caminhar sobre silvados pelo caminho da vida e achar ao cabo, em vez do marco miliário onde o peregrino de tréguas aos pés rasgados e sanguentos, a borda de um despenhadeiro, no qual é força precipitar-se? Sabes o que isto é? É minha triste história! Estrela momentânea que me iluminaste, caíste no abismo! Arbusto que me retiveste um instante, a minha mão desfalecida abandonou-te, e eu despenhei-me! Oh, quanto o meu fado foi negro!
Hermengarda, a paixão de Eurico, é capturada por mouros após um tétrico momento. É possivelmente a passagem mais perturbadora do romance, numa abadia em que as religiosas preferem a morte ao cativeiro. Eurico oferece-se para a resgatar, e consegue-o, numa operação heróica digna das maiores gestas de cavalaria, que culmina com um exército mouro às portas das serranias asturianas, onde Pelágio, irmão de Hermengarda, lidera a resistência à invasão àrabe (que mais tarde originará a reconquista cristã). Aí, nas profundezas das cavernas da montanha, Eurico revela o seu segredo a Hermengarda, apenas para se deparar com um obstáculo inultrapassável. Qualquer esperança de felicidade é anulada pelo sacerdócio, ao qual Eurico é tão fiel como ao seu amor por Hermengarda e ao seu amor pela pátria. Tolhido, desesperado, Eurico oferece-se à morte num combate desesperado, enquanto Hermengarda enlouquece.
Os sentimentos exacerbados são dominantes nesta obra atravessada por duas correntes profundas de fidelidade - a fidelidade à pátria e a fidelidade à religião, os grandes motores por detrás desta trágica história.
Este é um romance que tem dentro de si todos os ingredientes românticos. Todo o ambiente a oscilar entre o belo e o horrível, toda a exaltação de sentimentos e emoções, as descrições majestosas, que tiram o fôlego ao leitor, os cumes filosóficos de extremos incomensuráveis, o desespero do momento histórico escolhido pelo livro. Toda a prosa acompanha estes sentimentos, tornado Eurico, o Presbítero numa obra empolgante e apaixonante.
Quem não conhece este livro será certamente surpreendido. Os amantes do fantástico ou do romance histórico encontrarão prosa digna das mais empolgantes obras do género, com momentos de profunda erudição que a tornam complexa aos nossos olhos modernos. O seu carácter canónico e imposições de obrigatoriedade de leitura escolar das obras provavelmente afastam leitores do prazer de mergulhar sem receios nas ficções de Herculano. Recomenda-se particularmente aos fãs de ficções medievalistas como símbolo de um género que influencia ficções modernas na linha que vai de Lord of the Rings a Game of Thrones. É certo que Eurico o Presbítero não tem dragões nem tronos disputados. Não tem encantamentos e feitiçarias, ou criaturas míticas. Os seus castelos não são arquitecturas de efabulação, a sua geografia não é imaginária. Mas no seu cerne é um romance de cavalaria puro, onde um herói de espírito puro e espada afiada é levado num périplo iniciático onde objectivos difíceis e amores impossíveis moldam a alma.
Livro canónico, é facilmente encontrado em diversas colecções editoriais. Ou então visitem o projecto Adamastor e descarreguem a edição de domínio público em epub. Pessoalmente recomendo esta via. Há um certo frisson de hipermodernidade futurista em ler palavras escritas no século XIX que nos remetem para o século VI num leitor de ebooks ou tablet.
terça-feira, setembro 10, 2013
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