Texto de abertura do n.º1 da Colecção Escalas do Futuro, A Cidade no Tempo , Clifford D. Simak, Publicações Europa-América, 1955. Título original: City. Tradução de M. Pina e A. Margarido, capa de A. Areal. Colecção dirigida por Mário Henrique Leiria e C. Eurico da Costa.
Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.
da ficção científica em geral, de clifford d. Simak e de “a cidade no tempo” em particular
Se quiséssemos determinar o aparecimento do que hoje designamos por ficção cientifica, teríamos de retroceder na História, indo à procura do que dentro do conceito e definição, relativos à época, poderíamos englobar no termo «ciência». Mas se quisermos limitar-nos a uma definição, quanto possível literária e exacta, dos primeiros indícios da corrente que gerou a literatura de antecipação e as viagens extraterrestres teremos de nos reportar a Luciano de Samos (século II a.C.). Nas suas Histórias Verdadeiras o tema é explorado atráves de uma viagem que o herói empreende à Lua, numa barcarola à vela, meio de locomoção que correspondia inteiramente aos horizontes limitados da época, sob esse aspecto. Noutra obra posterior o herói do escritor de Samos voa para a Lua munido de um par de asas...
Na Idade Média o astrónomo Johannes Kepler descobriu as leis que regem o movimento dos planetas. E com base no seu conhecimento científico (o que o distanciava já de Luciano de Samos) escreveu um livro de ficção, Somnium, só publicado em 1964. Aqui a figura principal é transportada para a Lua por meios sobrenaturais, cuidadosa precaução para quem ainda vive numa época em que a magia vigora, e até porque Kepler, como cientista que era, sabia que os meios de locomoção conhecidos não eram suficientes para levar avante o empreendimento. Todavia, a sua descrição do aspecto local da Lua é a primeira que corresponde à realidade telescópica.
Quatro anos somente após a publicação de Somnium, na Inglaterra, isto é, em 1638, Bishop Godwin escreve Um Homem na Lua, trabalho lírico de antecipação, pois o seu herói voa para a Lua numa carruagem puxada a cisnes... No entanto, em 1640, publica Discurso sobre Um Mundo Novo, que, embora não sendo ficção, é uma discussão séria sobre o nosso satélite, sobre as suas condições físicas e estudo das possibilidades de nele se instalarem colónias humanas.
Depois, durante dois séculos, surgiram outras obras versando o tema das viagens interespaciais. Entre as mais engenhosas conta-se a Viagem à Lua e ao Sol, de Cyrano de Bergerac, aparecida em 1656. Ao grande escritor francês deve-se a original ideia de sugerir, como meio de locomoção no espaço, o foguete de propulsão. Fontanella, em 1686, num livro de astronomia popular, aborda a possibilidade de existência de vida noutros planetas. Voltaire, em 1752, no Micrómegas, cria os primeiros seres interastrais: o gigante Micrómegas, habitante do sistema solar de Sírio, que visita a Terra acompanhado de um saturniano. Todavia, a criação destas personagens obedece somente a um pretexto de sátira de costumes.
O primeiro verdadeiro trabalho de antecipação com base científica aparece pela pena de Júlio Verne, em 1865: Da Terra à Lua. No entanto, em 1827, J. Atterley já abordara o problema da aceleração em naves espaciais, com a criação de um metal que venceria a força da gravitação terrestre. Em 1901, H. G. Wells, o grande precursor da science-fiction, aborda o mesmo tema em Os Primeiros Homens na Lua, revelando a «cavorite», substância que anula a força da gravidade, o que lhe permite transportar os seus aventureiros numa simples esfera oca. Wells desenvolve também o tema dos seres interplanetários na história da invasão da Terra pelos Marcianos.
Em 1926 nasce a verdadeira science-fiction, tal como hoje a definimos, no magazine Amazing Stories, fundado por Hugo Gernsback, a quem se deve o termo que define a nova literatura. Em 1938 John W. Campbell lança o magazine Astounding Stories, aparecendo então a ficção científica social, de que hoje Ray Bradbury é o autor mais representativo. Entretanto, a nova literatura vai conquistando elevado número de adeptos e entusiastas do tema. Nos Estados Unidos fundam-se grupos e clubes que congregam escritores, leitores e cientistas de renome e o exemplo é também seguido pelo Canadá, U.R.S.S., Inglaterra, França e outros países. Actualmente o público leitor da ficção científica, entre o qual se encontra numeroso grupo de intelectuais e artistas, eleva-se a muitos milhões em todo o mundo.
Entretanto, dois grandes escritores, como Aldous Huxley e Alexis Tolstoi, e, mais recentemente, Elsa Triolet, interessam-se também pelo tema de antecipação e H. P. Lovecraft traça um novo caminho na literatura fantástica.
A deflagração da bomba atómica em Iroshima é o início de uma nova era para a humanidade e iria marcar uma nova etapa no desenvolvimento da ficção científica. Após a guerra surgiram nos Estados Unidos Ray Bradbury, o cientista Isaac Asimov, Van Vogt, Robert Heinlein, Clifford D. Simak, Th. Sturgeon, etc., que rapidamente se tornaram os autores favoritos de um público sempre crescente de entusiastas. Em França, Francis Carsac, Roger Sorez e o estranho escritor de tendências surrealistas Ives Touraine – que pela primeira vez coloca, no plano da antecipação social, o problema sexual – caminham na vanguarda de um grupo de novos escritores do género. Na Inglaterra, cientistas como Arthur C. Clark [sic] e Low, entre outros, inscrevem-se também como autores desta nova forma literária.
A science-fiction invadiu já o cinema, a rádio e a televisão, e promete tornar-se um dos mais representativos ramos da literatura da actualidade. Nesta escala permanente para o futuro, que é o próprio destino da humanidade, a ficção cientifica abre o caminho. Nisso reside o segredo do seu inegável êxito.
*
o autor – De Clifford D. Simak há a dizer que é um homem e que está vivo. Nasceu e há-de morrer como tantos milhões de outros homens. Quanto ao local onde existe, é mais uma coordenada geográfica a juntar a tantas que por aí há. Não são dados biográficos o que nele nos interessa; é a espantosa capacidade de sentir os problemas humanos, a riqueza poética e a força de imaginação que neste pequeno homenzinho americano nos espanta e nos conduz para além da fronteira do que fica escrito. Quando, já ultrapassada a possibilidade do espanto, abrimos os olhos ao que nos conta, é com uma espécie de ânsia e amizade que ficamos à espera que ele nos entre pela porta, vindo do outro lado do tempo, acompanhado da notícia de que já não há guerra, já não há ódio, já não há temor. Não impica isto um abandono da força de caminhar e construir; antes pelo contrário. Clifford D. Simak, quando nos conta as suas histórias, diz-nos também que nada está perdido e que a desistência é um engano. Chegar ao fim, apontadas as etapas necessárias e convenientes, é um valor que está sempre presente na obra hoje estranhamente explosiva e quase única de Clifford D. Simak neste outro novo rumo da literatura que é a ficção científica. Quanto ao resto, são possíveis confusões previamente preparadas por pessoas que não querem ou a quem não convém ver.
*
a obra – Não estamos em frente de uma obra de pura ficção científica. Esta obra ultrapassa em muito os puros dados de uma aventura de um grupo de homens em direcção a determinado planeta. Efectivamente o que encontramos é o destino de toda a humanidade. Trata-se de um jogo total, que implica o porem-se em causa todas as virtualidades da raça humana.
Com efeito vemos os homens lutarem pela solução dos seus problemas e encontramos o lendário Bounce Websters, que tenta criar uma civilização dual: homens e cães. Civilização que apenas chega a esboçar-se, pois o homem descobre em Júpiter a solução para os seus problemas. Do que acontece em Júpiter importa pouco falar, pois os homens alcançaram o estádio de super-homens.
Paralelamente o encontram homens quem ficam na Terra, pois se perdeu toda a razão dos crimes e violências de qualquer espécie, a superabundância de produtos que não encontram consumo, o excesso de propriedades que a ninguém interessam, que eliminam a causa das dissensões anteriores. O homem é, tanto em Júpiter como na Terra, um homem integral. Trata-se do homem consciente de todas as suas vivências.
O que acontece com os cães é realmente menor? Ou é realmente muito importante? Supomos que é menor, ainda que o autor nos tente mostrar um dos caminhos viáveis, mas desprezado pelo homem, para a solução dos seus problemas. A civilização geométrica e mecânica dos homens opõe o autor o sentimento psíquico dos cães. A solução intermédia, o exemplo do que vai alcançar-se, são os mutantes.
Mas o mais importante deste livro é a denúncia do caminho que deve seguir-se para eliminar as diferenças que existem entre os homens, a solução económica de todos os problemas. Com efeito, alterada a base económica, vemos que os crimes desaparecem e a doença sofre um largo revés. O crime, que é, como se sabe, uma das coordenadas mais importantes do nosso tempo, desaparece totalmente. Perde-se a tradição da violência. Cessam a miséria e a doença. O homem, tal como existe hoje, é um homem menor, diminuído, que muitas vezes encontramos pelos meandros do não ser, da não existência, a tal forçado pelas condições económicas que encontra. A liberdade que, quer em Júpiter quer em Genebra – a única cidade que continua -, os homens encontram será uma pura utopia? E não será uma rigorosa sátira a fraternidade que os cães criam entre todos os animais e os homens não parecem capazes de levar a cabo entre si?
É fora de dúvidas que este John Webster, perdido em Genebra em investigações sem interesse, assim como Sara, pintora, são símbolos dos intelectuais que se isolam dos problemas que realmente interessam e se fossilizam, procurando caminhos que não levam a parte alguma, salvo a perda dos valores vivos. Caminho que um autómato, Jenkins, nos aparece percorrendo com coerência e dignidade. Símbolo também? Sem dúvida, símbolo de um homem novo, permeável a todas as influências, que vai moldar um mundo novo. Mundo donde sairão os homens.
os directores da colecção
prefácio escrito para a edição portuguesa por um cão amigo dos tradutores
A verdade, amigos, é que é melindroso, na minha posição de cão, falar-vos de um livro que nos descreve antecipadamente o futuro da minha raça. Ainda que vindo ao encontro dos temas que nos têm preocupado e resolvendo, desde já, algumas das nossas mais fundas preocupações, é muito difícil, para mim, falar-vos deste livro.
Com efeito, devemos pensar que estou a escrever para homens, homens que nos tratam como objectos de uso comum, alguns, de utilidade, outros, e de ócio e divertimento, outros ainda. O futuro que nos é traçado neste livro é, como se verá, longo e difícil; a nossa existência hoje é muita dura. De uma dureza cada vez maior se pensarmos que os homens roem hoje os ossos que nos deviam caber. Porém, que podem muitos homens fazer senão roer ossos?
Mas não vos falarei da minha raça. Espero que compreendais a delicada missão que me deram quando me pediram para escrever esta nota prefacial. Falarei, portanto, do homem.
Não do homem de hoje, mas do homem futuro. Não do homem roído por doenças e preocupações, mas do homem futuro. Não do homem que é presa quotidiana do medo e da fome, mas do homem livre. Não do homem coisa, que é tantas vezes menos do que um cão (e espero, amigos, que compreendais que não nos cabe culpa da posição de luxo e privilégio de que muitas vezes aparecemos ornados), mas do homem integral, do homem que será um dia nosso aliado, que criará a civilização dual, onde homens e cães poderão percorrer uma vida comum, até que os destinos se diferenciem.
Venceram-se as doenças e venceram-se as barreiras económicas, venceram-se as lutas entre irmãos (e queremos também, amigos, pedir-vos desculpas dos cães-polícias que encarregam de perseguir homens e dos cães de guerra que também perseguem homens; a verdade, amigos, é que nos não cabe a culpa: não temos de pedir desculpa ou perdão, mas os homens, esses, têm de nos pedir desculpa e perdão), os homens encontram-se numa plataforma comum, onde os problemas se discutem lado a lado. Peço que reparem no facto de que desapareceram referências a raças, credos, educação e cultura. Os homens aparecem-nos iguais. Peço que reparem também que, vencidas as superstições de vários géneros e as dificuldades económicas, a religião desapareceu. A ligação entre os cães e os homens é feita por intermédio de autómatos. Julgo a selecção justa, pois a verdade é que para os homens que já o são (finalmente!) e para os cães que ainda não são os cães a solução é o meio-homem, o homem-ferramenta (e podemos ver no autómato o homem definido em termos de geometria e mecânica).
Não me cabe aqui falar de Júpiter, ainda que um dos membros da minha raça tenha estado envolvido nessa aventura. Deixou de se tratar da raça humana: são rastejadores, uma raça nova, uma mutação.
Dos mutantes também não me cabe falar: superaram a raça humana e etraram em regiões quase desconhecidas e dificilmente frequentáveis. Outros, na altura oportuna, vos falarão de uns e de outros.
A verdade, amigos, é que pouco mais me resta para vos dizer. Lamento só que, embora sabendo o futuro, já o não alcance. Pena por mim e pelos meus irmãos. E mais pena ainda pelos homens.
Oxalá tudo corra como está escrito que acontecerá.
Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.
da ficção científica em geral, de clifford d. Simak e de “a cidade no tempo” em particular
Se quiséssemos determinar o aparecimento do que hoje designamos por ficção cientifica, teríamos de retroceder na História, indo à procura do que dentro do conceito e definição, relativos à época, poderíamos englobar no termo «ciência». Mas se quisermos limitar-nos a uma definição, quanto possível literária e exacta, dos primeiros indícios da corrente que gerou a literatura de antecipação e as viagens extraterrestres teremos de nos reportar a Luciano de Samos (século II a.C.). Nas suas Histórias Verdadeiras o tema é explorado atráves de uma viagem que o herói empreende à Lua, numa barcarola à vela, meio de locomoção que correspondia inteiramente aos horizontes limitados da época, sob esse aspecto. Noutra obra posterior o herói do escritor de Samos voa para a Lua munido de um par de asas...
Na Idade Média o astrónomo Johannes Kepler descobriu as leis que regem o movimento dos planetas. E com base no seu conhecimento científico (o que o distanciava já de Luciano de Samos) escreveu um livro de ficção, Somnium, só publicado em 1964. Aqui a figura principal é transportada para a Lua por meios sobrenaturais, cuidadosa precaução para quem ainda vive numa época em que a magia vigora, e até porque Kepler, como cientista que era, sabia que os meios de locomoção conhecidos não eram suficientes para levar avante o empreendimento. Todavia, a sua descrição do aspecto local da Lua é a primeira que corresponde à realidade telescópica.
Quatro anos somente após a publicação de Somnium, na Inglaterra, isto é, em 1638, Bishop Godwin escreve Um Homem na Lua, trabalho lírico de antecipação, pois o seu herói voa para a Lua numa carruagem puxada a cisnes... No entanto, em 1640, publica Discurso sobre Um Mundo Novo, que, embora não sendo ficção, é uma discussão séria sobre o nosso satélite, sobre as suas condições físicas e estudo das possibilidades de nele se instalarem colónias humanas.
Depois, durante dois séculos, surgiram outras obras versando o tema das viagens interespaciais. Entre as mais engenhosas conta-se a Viagem à Lua e ao Sol, de Cyrano de Bergerac, aparecida em 1656. Ao grande escritor francês deve-se a original ideia de sugerir, como meio de locomoção no espaço, o foguete de propulsão. Fontanella, em 1686, num livro de astronomia popular, aborda a possibilidade de existência de vida noutros planetas. Voltaire, em 1752, no Micrómegas, cria os primeiros seres interastrais: o gigante Micrómegas, habitante do sistema solar de Sírio, que visita a Terra acompanhado de um saturniano. Todavia, a criação destas personagens obedece somente a um pretexto de sátira de costumes.
O primeiro verdadeiro trabalho de antecipação com base científica aparece pela pena de Júlio Verne, em 1865: Da Terra à Lua. No entanto, em 1827, J. Atterley já abordara o problema da aceleração em naves espaciais, com a criação de um metal que venceria a força da gravitação terrestre. Em 1901, H. G. Wells, o grande precursor da science-fiction, aborda o mesmo tema em Os Primeiros Homens na Lua, revelando a «cavorite», substância que anula a força da gravidade, o que lhe permite transportar os seus aventureiros numa simples esfera oca. Wells desenvolve também o tema dos seres interplanetários na história da invasão da Terra pelos Marcianos.
Em 1926 nasce a verdadeira science-fiction, tal como hoje a definimos, no magazine Amazing Stories, fundado por Hugo Gernsback, a quem se deve o termo que define a nova literatura. Em 1938 John W. Campbell lança o magazine Astounding Stories, aparecendo então a ficção científica social, de que hoje Ray Bradbury é o autor mais representativo. Entretanto, a nova literatura vai conquistando elevado número de adeptos e entusiastas do tema. Nos Estados Unidos fundam-se grupos e clubes que congregam escritores, leitores e cientistas de renome e o exemplo é também seguido pelo Canadá, U.R.S.S., Inglaterra, França e outros países. Actualmente o público leitor da ficção científica, entre o qual se encontra numeroso grupo de intelectuais e artistas, eleva-se a muitos milhões em todo o mundo.
Entretanto, dois grandes escritores, como Aldous Huxley e Alexis Tolstoi, e, mais recentemente, Elsa Triolet, interessam-se também pelo tema de antecipação e H. P. Lovecraft traça um novo caminho na literatura fantástica.
A deflagração da bomba atómica em Iroshima é o início de uma nova era para a humanidade e iria marcar uma nova etapa no desenvolvimento da ficção científica. Após a guerra surgiram nos Estados Unidos Ray Bradbury, o cientista Isaac Asimov, Van Vogt, Robert Heinlein, Clifford D. Simak, Th. Sturgeon, etc., que rapidamente se tornaram os autores favoritos de um público sempre crescente de entusiastas. Em França, Francis Carsac, Roger Sorez e o estranho escritor de tendências surrealistas Ives Touraine – que pela primeira vez coloca, no plano da antecipação social, o problema sexual – caminham na vanguarda de um grupo de novos escritores do género. Na Inglaterra, cientistas como Arthur C. Clark [sic] e Low, entre outros, inscrevem-se também como autores desta nova forma literária.
A science-fiction invadiu já o cinema, a rádio e a televisão, e promete tornar-se um dos mais representativos ramos da literatura da actualidade. Nesta escala permanente para o futuro, que é o próprio destino da humanidade, a ficção cientifica abre o caminho. Nisso reside o segredo do seu inegável êxito.
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o autor – De Clifford D. Simak há a dizer que é um homem e que está vivo. Nasceu e há-de morrer como tantos milhões de outros homens. Quanto ao local onde existe, é mais uma coordenada geográfica a juntar a tantas que por aí há. Não são dados biográficos o que nele nos interessa; é a espantosa capacidade de sentir os problemas humanos, a riqueza poética e a força de imaginação que neste pequeno homenzinho americano nos espanta e nos conduz para além da fronteira do que fica escrito. Quando, já ultrapassada a possibilidade do espanto, abrimos os olhos ao que nos conta, é com uma espécie de ânsia e amizade que ficamos à espera que ele nos entre pela porta, vindo do outro lado do tempo, acompanhado da notícia de que já não há guerra, já não há ódio, já não há temor. Não impica isto um abandono da força de caminhar e construir; antes pelo contrário. Clifford D. Simak, quando nos conta as suas histórias, diz-nos também que nada está perdido e que a desistência é um engano. Chegar ao fim, apontadas as etapas necessárias e convenientes, é um valor que está sempre presente na obra hoje estranhamente explosiva e quase única de Clifford D. Simak neste outro novo rumo da literatura que é a ficção científica. Quanto ao resto, são possíveis confusões previamente preparadas por pessoas que não querem ou a quem não convém ver.
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a obra – Não estamos em frente de uma obra de pura ficção científica. Esta obra ultrapassa em muito os puros dados de uma aventura de um grupo de homens em direcção a determinado planeta. Efectivamente o que encontramos é o destino de toda a humanidade. Trata-se de um jogo total, que implica o porem-se em causa todas as virtualidades da raça humana.
Com efeito vemos os homens lutarem pela solução dos seus problemas e encontramos o lendário Bounce Websters, que tenta criar uma civilização dual: homens e cães. Civilização que apenas chega a esboçar-se, pois o homem descobre em Júpiter a solução para os seus problemas. Do que acontece em Júpiter importa pouco falar, pois os homens alcançaram o estádio de super-homens.
Paralelamente o encontram homens quem ficam na Terra, pois se perdeu toda a razão dos crimes e violências de qualquer espécie, a superabundância de produtos que não encontram consumo, o excesso de propriedades que a ninguém interessam, que eliminam a causa das dissensões anteriores. O homem é, tanto em Júpiter como na Terra, um homem integral. Trata-se do homem consciente de todas as suas vivências.
O que acontece com os cães é realmente menor? Ou é realmente muito importante? Supomos que é menor, ainda que o autor nos tente mostrar um dos caminhos viáveis, mas desprezado pelo homem, para a solução dos seus problemas. A civilização geométrica e mecânica dos homens opõe o autor o sentimento psíquico dos cães. A solução intermédia, o exemplo do que vai alcançar-se, são os mutantes.
Mas o mais importante deste livro é a denúncia do caminho que deve seguir-se para eliminar as diferenças que existem entre os homens, a solução económica de todos os problemas. Com efeito, alterada a base económica, vemos que os crimes desaparecem e a doença sofre um largo revés. O crime, que é, como se sabe, uma das coordenadas mais importantes do nosso tempo, desaparece totalmente. Perde-se a tradição da violência. Cessam a miséria e a doença. O homem, tal como existe hoje, é um homem menor, diminuído, que muitas vezes encontramos pelos meandros do não ser, da não existência, a tal forçado pelas condições económicas que encontra. A liberdade que, quer em Júpiter quer em Genebra – a única cidade que continua -, os homens encontram será uma pura utopia? E não será uma rigorosa sátira a fraternidade que os cães criam entre todos os animais e os homens não parecem capazes de levar a cabo entre si?
É fora de dúvidas que este John Webster, perdido em Genebra em investigações sem interesse, assim como Sara, pintora, são símbolos dos intelectuais que se isolam dos problemas que realmente interessam e se fossilizam, procurando caminhos que não levam a parte alguma, salvo a perda dos valores vivos. Caminho que um autómato, Jenkins, nos aparece percorrendo com coerência e dignidade. Símbolo também? Sem dúvida, símbolo de um homem novo, permeável a todas as influências, que vai moldar um mundo novo. Mundo donde sairão os homens.
os directores da colecção
prefácio escrito para a edição portuguesa por um cão amigo dos tradutores
A verdade, amigos, é que é melindroso, na minha posição de cão, falar-vos de um livro que nos descreve antecipadamente o futuro da minha raça. Ainda que vindo ao encontro dos temas que nos têm preocupado e resolvendo, desde já, algumas das nossas mais fundas preocupações, é muito difícil, para mim, falar-vos deste livro.
Com efeito, devemos pensar que estou a escrever para homens, homens que nos tratam como objectos de uso comum, alguns, de utilidade, outros, e de ócio e divertimento, outros ainda. O futuro que nos é traçado neste livro é, como se verá, longo e difícil; a nossa existência hoje é muita dura. De uma dureza cada vez maior se pensarmos que os homens roem hoje os ossos que nos deviam caber. Porém, que podem muitos homens fazer senão roer ossos?
Mas não vos falarei da minha raça. Espero que compreendais a delicada missão que me deram quando me pediram para escrever esta nota prefacial. Falarei, portanto, do homem.
Não do homem de hoje, mas do homem futuro. Não do homem roído por doenças e preocupações, mas do homem futuro. Não do homem que é presa quotidiana do medo e da fome, mas do homem livre. Não do homem coisa, que é tantas vezes menos do que um cão (e espero, amigos, que compreendais que não nos cabe culpa da posição de luxo e privilégio de que muitas vezes aparecemos ornados), mas do homem integral, do homem que será um dia nosso aliado, que criará a civilização dual, onde homens e cães poderão percorrer uma vida comum, até que os destinos se diferenciem.
Venceram-se as doenças e venceram-se as barreiras económicas, venceram-se as lutas entre irmãos (e queremos também, amigos, pedir-vos desculpas dos cães-polícias que encarregam de perseguir homens e dos cães de guerra que também perseguem homens; a verdade, amigos, é que nos não cabe a culpa: não temos de pedir desculpa ou perdão, mas os homens, esses, têm de nos pedir desculpa e perdão), os homens encontram-se numa plataforma comum, onde os problemas se discutem lado a lado. Peço que reparem no facto de que desapareceram referências a raças, credos, educação e cultura. Os homens aparecem-nos iguais. Peço que reparem também que, vencidas as superstições de vários géneros e as dificuldades económicas, a religião desapareceu. A ligação entre os cães e os homens é feita por intermédio de autómatos. Julgo a selecção justa, pois a verdade é que para os homens que já o são (finalmente!) e para os cães que ainda não são os cães a solução é o meio-homem, o homem-ferramenta (e podemos ver no autómato o homem definido em termos de geometria e mecânica).
Não me cabe aqui falar de Júpiter, ainda que um dos membros da minha raça tenha estado envolvido nessa aventura. Deixou de se tratar da raça humana: são rastejadores, uma raça nova, uma mutação.
Dos mutantes também não me cabe falar: superaram a raça humana e etraram em regiões quase desconhecidas e dificilmente frequentáveis. Outros, na altura oportuna, vos falarão de uns e de outros.
A verdade, amigos, é que pouco mais me resta para vos dizer. Lamento só que, embora sabendo o futuro, já o não alcance. Pena por mim e pelos meus irmãos. E mais pena ainda pelos homens.
Oxalá tudo corra como está escrito que acontecerá.