sábado, junho 28, 2014

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Texto de abertura da edição portuguesa de City (A Cidade no Tempo), de Clifford D. Simak [1955]

Texto de abertura do n.º1 da Colecção Escalas do Futuro,  A Cidade no Tempo , Clifford D. Simak, Publicações Europa-América, 1955. Título original: City. Tradução de M. Pina e A. Margarido, capa de A. Areal. Colecção dirigida por Mário Henrique Leiria e C. Eurico da Costa.

Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.


da ficção científica em geral, de clifford d. Simak e de “a cidade no tempo” em particular
Se quiséssemos determinar o aparecimento do que hoje designamos por ficção cientifica, teríamos de retroceder na História, indo à procura do que dentro do conceito e definição, relativos à época, poderíamos englobar no termo «ciência». Mas se quisermos limitar-nos a uma definição, quanto possível literária e exacta, dos primeiros indícios da corrente que gerou a literatura de antecipação e as viagens extraterrestres teremos de nos reportar a Luciano de Samos (século II a.C.). Nas suas Histórias Verdadeiras o tema é explorado atráves de uma viagem que o herói empreende à Lua, numa barcarola à vela, meio de locomoção que correspondia inteiramente aos horizontes limitados da época, sob esse aspecto. Noutra obra posterior o herói do escritor de Samos voa para a Lua munido de um par de asas...

Na Idade Média o astrónomo Johannes Kepler descobriu as leis que regem o movimento dos planetas. E com base no seu conhecimento científico (o que o distanciava já de Luciano de Samos) escreveu um livro de ficção, Somnium, só publicado em 1964. Aqui a figura principal é transportada para a Lua por meios sobrenaturais, cuidadosa precaução para quem ainda vive numa época em que a magia vigora, e até porque Kepler, como cientista que era, sabia que os meios de locomoção conhecidos não eram suficientes para levar avante o empreendimento. Todavia, a sua descrição do aspecto local da Lua é a primeira que corresponde à realidade telescópica.

Quatro anos somente após a publicação de Somnium, na Inglaterra, isto é, em 1638, Bishop Godwin escreve Um Homem na Lua, trabalho lírico de antecipação, pois o seu herói voa para a Lua numa carruagem puxada a cisnes... No entanto, em 1640, publica Discurso sobre Um Mundo Novo, que, embora não sendo ficção, é uma discussão séria sobre o nosso satélite, sobre as suas condições físicas e estudo das possibilidades de nele se instalarem colónias humanas.

Depois, durante dois séculos, surgiram outras obras versando o tema das viagens interespaciais. Entre as mais engenhosas conta-se a Viagem à Lua e ao Sol, de Cyrano de Bergerac, aparecida em 1656. Ao grande escritor francês deve-se a original ideia de sugerir, como meio de locomoção no espaço, o foguete de propulsão. Fontanella, em 1686, num livro de astronomia popular, aborda a possibilidade de existência de vida noutros planetas. Voltaire, em 1752, no Micrómegas, cria os primeiros seres interastrais: o gigante Micrómegas, habitante do sistema solar de Sírio, que visita a Terra acompanhado de um saturniano. Todavia, a criação destas personagens obedece somente a um pretexto de sátira de costumes.

O primeiro verdadeiro trabalho de antecipação com base científica aparece pela pena de Júlio Verne, em 1865: Da Terra à Lua. No entanto, em 1827, J. Atterley já abordara o problema da aceleração em naves espaciais, com a criação de um metal que venceria a força da gravitação terrestre. Em 1901, H. G. Wells, o grande precursor da science-fiction, aborda o mesmo tema em Os Primeiros Homens na Lua, revelando a «cavorite», substância que anula a força da gravidade, o que lhe permite transportar os seus aventureiros numa simples esfera oca. Wells desenvolve também o tema dos seres interplanetários na história da invasão da Terra pelos Marcianos.

Em 1926 nasce a verdadeira science-fiction, tal como hoje a definimos, no magazine Amazing Stories, fundado por Hugo Gernsback, a quem se deve o termo que define a nova literatura. Em 1938 John W. Campbell lança o magazine Astounding Stories, aparecendo então a ficção científica social, de que hoje Ray Bradbury é o autor mais representativo. Entretanto, a nova literatura vai conquistando elevado número de adeptos e entusiastas do tema. Nos Estados Unidos fundam-se grupos e clubes que congregam escritores, leitores e cientistas de renome e o exemplo é também seguido pelo Canadá, U.R.S.S., Inglaterra, França e outros países. Actualmente o público leitor da ficção científica, entre o qual se encontra numeroso grupo de intelectuais e artistas, eleva-se a muitos milhões em todo o mundo.

Entretanto, dois grandes escritores, como Aldous Huxley e Alexis Tolstoi, e, mais recentemente, Elsa Triolet, interessam-se também pelo tema de antecipação e H. P. Lovecraft traça um novo caminho na literatura fantástica.

A deflagração da bomba atómica em Iroshima é o início de uma nova era para a humanidade e iria marcar uma nova etapa no desenvolvimento da ficção científica. Após a guerra surgiram nos Estados Unidos Ray Bradbury, o cientista Isaac Asimov, Van Vogt, Robert Heinlein, Clifford D. Simak, Th. Sturgeon, etc., que rapidamente se tornaram os autores favoritos de um público sempre crescente de entusiastas. Em França, Francis Carsac, Roger Sorez e o estranho escritor de tendências surrealistas Ives Touraine – que pela primeira vez coloca, no plano da antecipação social, o problema sexual – caminham na vanguarda de um grupo de novos escritores do género. Na Inglaterra, cientistas como Arthur C. Clark [sic] e Low, entre outros, inscrevem-se também como autores desta nova forma literária.

A science-fiction invadiu já o cinema, a rádio e a televisão, e promete tornar-se um dos mais representativos ramos da literatura da actualidade. Nesta escala permanente para o futuro, que é o próprio destino da humanidade, a ficção cientifica abre o caminho. Nisso reside o segredo do seu inegável êxito.

*

o autor – De Clifford D. Simak há a dizer que é um homem e que está vivo. Nasceu e há-de morrer como tantos milhões de outros homens. Quanto ao local onde existe, é mais uma coordenada geográfica a juntar a tantas que por aí há. Não são dados biográficos o que nele nos interessa; é a espantosa capacidade de sentir os problemas humanos, a riqueza poética e a força de imaginação que neste pequeno homenzinho americano nos espanta e nos conduz para além da fronteira do que fica escrito. Quando, já ultrapassada a possibilidade do espanto, abrimos os olhos ao que nos conta, é com uma espécie de ânsia e amizade que ficamos à espera que ele nos entre pela porta, vindo do outro lado do tempo, acompanhado da notícia de que já não há guerra, já não há ódio, já não há temor. Não impica isto um abandono da força de caminhar e construir; antes pelo contrário. Clifford D. Simak, quando nos conta as suas histórias, diz-nos também que nada está perdido e que a desistência é um engano. Chegar ao fim, apontadas as etapas necessárias e convenientes, é um valor que está sempre presente na obra hoje estranhamente explosiva e quase única de Clifford D. Simak neste outro novo rumo da literatura que é a ficção científica. Quanto ao resto, são possíveis confusões previamente preparadas por pessoas que não querem ou a quem não convém ver.

*

a obra – Não estamos em frente de uma obra de pura ficção científica. Esta obra ultrapassa em muito os puros dados de uma aventura de um grupo de homens em direcção a determinado planeta. Efectivamente o que encontramos é o destino de toda a humanidade. Trata-se de um jogo total, que implica o porem-se em causa todas as virtualidades da raça humana.

Com efeito vemos os homens lutarem pela solução dos seus problemas e encontramos o lendário Bounce Websters, que tenta criar uma civilização dual: homens e cães. Civilização que apenas chega a esboçar-se, pois o homem descobre em Júpiter a solução para os seus problemas. Do que acontece em Júpiter importa pouco falar, pois os homens alcançaram o estádio de super-homens.

Paralelamente o encontram homens quem ficam na Terra, pois se perdeu toda a razão dos crimes e violências de qualquer espécie, a superabundância de produtos que não encontram consumo, o excesso de propriedades que a ninguém interessam, que eliminam a causa das dissensões anteriores. O homem é, tanto em Júpiter como na Terra, um homem integral. Trata-se do homem consciente de todas as suas vivências.

O que acontece com os cães é realmente menor? Ou é realmente muito importante? Supomos que é menor, ainda que o autor nos tente mostrar um dos caminhos viáveis, mas desprezado pelo homem, para a solução dos seus problemas. A civilização geométrica e mecânica dos homens opõe o autor o sentimento psíquico dos cães. A solução intermédia, o exemplo do que vai alcançar-se, são os mutantes.

Mas o mais importante deste livro é a denúncia do caminho que deve seguir-se para eliminar as diferenças que existem entre os homens, a solução económica de todos os problemas. Com efeito, alterada a base económica, vemos que os crimes desaparecem e a doença sofre um largo revés. O crime, que é, como se sabe, uma das coordenadas mais importantes do nosso tempo, desaparece totalmente. Perde-se a tradição da violência. Cessam a miséria e a doença. O homem, tal como existe hoje, é um homem menor, diminuído, que muitas vezes encontramos pelos meandros do não ser, da não existência, a tal forçado pelas condições económicas que encontra. A liberdade que, quer em Júpiter quer em Genebra – a única cidade que continua -, os homens encontram será uma pura utopia? E não será uma rigorosa sátira a fraternidade que os cães criam entre todos os animais e os homens não parecem capazes de levar a cabo entre si?

É fora de dúvidas que este John Webster, perdido em Genebra em investigações sem interesse, assim como Sara, pintora, são símbolos dos intelectuais que se isolam dos problemas que realmente interessam e se fossilizam, procurando caminhos que não levam a parte alguma, salvo a perda dos valores vivos. Caminho que um autómato, Jenkins, nos aparece percorrendo com coerência e dignidade. Símbolo também? Sem dúvida, símbolo de um homem novo, permeável a todas as influências, que vai moldar um mundo novo. Mundo donde sairão os homens.

os directores da colecção

prefácio escrito para a edição portuguesa por um cão amigo dos tradutores

A verdade, amigos, é que é melindroso, na minha posição de cão, falar-vos de um livro que nos descreve antecipadamente o futuro da minha raça. Ainda que vindo ao encontro dos temas que nos têm preocupado e resolvendo, desde já, algumas das nossas mais fundas preocupações, é muito difícil, para mim, falar-vos deste livro.

Com efeito, devemos pensar que estou a escrever para homens, homens que nos tratam como objectos de uso comum, alguns, de utilidade, outros, e de ócio e divertimento, outros ainda. O futuro que nos é traçado neste livro é, como se verá, longo e difícil; a nossa existência hoje é muita dura. De uma dureza cada vez maior se pensarmos que os homens roem hoje os ossos que nos deviam caber. Porém, que podem muitos homens fazer senão roer ossos?

Mas não vos falarei da minha raça. Espero que compreendais a delicada missão que me deram quando me pediram para escrever esta nota prefacial. Falarei, portanto, do homem.

Não do homem de hoje, mas do homem futuro. Não do homem roído por doenças e preocupações, mas do homem futuro. Não do homem que é presa quotidiana do medo e da fome, mas do homem livre. Não do homem coisa, que é tantas vezes menos do que um cão (e espero, amigos, que compreendais que não nos cabe culpa da posição de luxo e privilégio de que muitas vezes aparecemos ornados), mas do homem integral, do homem que será um dia nosso aliado, que criará a civilização dual, onde homens e cães poderão percorrer uma vida comum, até que os destinos se diferenciem.

Venceram-se as doenças e venceram-se as barreiras económicas, venceram-se as lutas entre irmãos (e queremos também, amigos, pedir-vos desculpas dos cães-polícias que encarregam de perseguir homens e dos cães de guerra que também perseguem homens; a verdade, amigos, é que nos não cabe a culpa: não temos de pedir desculpa ou perdão, mas os homens, esses, têm de nos pedir desculpa e perdão), os homens encontram-se numa plataforma comum, onde os problemas se discutem lado a lado. Peço que reparem no facto de que desapareceram referências a raças, credos, educação e cultura. Os homens aparecem-nos iguais. Peço que reparem também que, vencidas as superstições de vários géneros e as dificuldades económicas, a religião desapareceu. A ligação entre os cães e os homens é feita por intermédio de autómatos. Julgo a selecção justa, pois a verdade é que para os homens que já o são (finalmente!) e para os cães que ainda não são os cães a solução é o meio-homem, o homem-ferramenta (e podemos ver no autómato o homem definido em termos de geometria e mecânica).

Não me cabe aqui falar de Júpiter, ainda que um dos membros da minha raça tenha estado envolvido nessa aventura. Deixou de se tratar da raça humana: são rastejadores, uma raça nova, uma mutação.

Dos mutantes também não me cabe falar: superaram a raça humana e etraram em regiões quase desconhecidas e dificilmente frequentáveis. Outros, na altura oportuna, vos falarão de uns e de outros.

A verdade, amigos, é que pouco mais me resta para vos dizer. Lamento só que, embora sabendo o futuro, já o não alcance. Pena por mim e pelos meus irmãos. E mais pena ainda pelos homens.

Oxalá tudo corra como está escrito que acontecerá.



sexta-feira, junho 13, 2014

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Crítica a «Missão em Sidar», de Stefan Wul, in JLA (1963)

Crítica in Jornal de Letras e Artes, 2 de Outubro de 1963, p. 3. Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.
 
«Missão em Sidar», de Stefan Wul

«Missão em Sidar» é um curioso livro para os amadores de ficção científica devido à pena e à imaginação de um dos autores do género mais traduzido em Portugal. Vão-se desbobinando, num crescendo surpreendente, as aventuras de Lorrain no planeta Sidar que Wul efabulou com maestria confirmando o grande prémio do romance de ficção científica de que é detentor.

A boa tradução do Eng.º Gomes dos Santos e uma rigorosa capa de Lima de Freitas valorizam mais  este volume da Colecção Argonauta da Livros do Brasil.

J.V.

quarta-feira, junho 11, 2014

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Entrevista a Alice Sampaio, in JLA (1963)

Entrevista publicada no Jornal de Letras e Artes, 17 de Julho de 1963, pp 1-14. Transcrita para efeitos de memória bibliográfica.

Alice Sampaio: Creio no real e busco-lhe o significado
Aventura a um tempo científica e metafísica, a intriga de «O Aquário» afirma o dom de fantasia de Alice Sampaio, que, após ter-se revelado com «A Cidade Sem Espaço», atenta observadora do quotidiano, comete agora os domínios da Humanidade futura. Arrojada aventura, que nos transporta a um mundo de robots e super-homens, cuja faculdade de amar se atrofiou, mas que conservam a nostalgia da comunicação perfeita. Obra diversa do habitual, colocará possivelmente crítica e pública numa atitude de perplexidade. Porque se trata de um romance inteligente e original, sejam quais forem os seus defeitos de composição e estilo, entendemos dever procurar Alice Sampaio, a quem começámos por perguntar:

- Qual o tema central de «O Aquário»»?

- Atendendo a que escritor, obra e leitores foram um todo, creio ser quase inútil interrogar um sem os outros. E eu gostaria de deixar ao cuidado desses leitores, se existirem, o encargo de me darem conta desse tema. Pretendi, na forma mais artística possível, contar uma história que fosse simultaneamente uma conversa inteligente – a autora simples parceira ou comparsa – e onde se pusessem perguntas, mal ou bem, a que outros deveriam responder, mal ou bem – uma larga discussão, «un amusement», se me é permitido. Quer isto dizer que me nego a colaborar na construção dum «tempo presente» válido e concreto? Nada disso! Estou convencida, sim, de que os homens de todos os tempos ajudaram a formar o homem de hoje. Então – pergunto -, por que razão não podemos colaborar na construção do homem futuro, pondo problemas do homem actual? (Tentei pôr problemas do homem actual, embora servindo-me de um mundo a mil léguas de distância, menos que hipotético mas nem por isso destituído de «real»).

E se no dizer de Bertrand Russell, o importante para o homem não é responder a todas as perguntas que porventura se ponham ao seu espirito mas sim formulá-las, se a cada era competem específicas perguntas (Copérnico não saberia interrogar-se sobre a face invisível da Lua), então – repito – que fazer de nós quando possuidores de um «spaac», ou seja do tapete-mágico? Perguntas talvez inúteis, talvez descabidas, mas que insisto em fazer. Qual o tema de «O Aquário»? Aguarda pacientmeente as respostas dos leitores.

- Considera-se uma escritora realista? Em que corrente ou tendência se sente integrada?

- Que significa ser-se classificado ou catalogado como escritor realista? Dar a primazia à solução dos problemas de ordem material, no sentido restrito e simultaneamente largo de que todos tenham pão para a boca? Sem dúvida, é isso o primeiro grande passo do homem. Contudo, afigura-se-me impossível resolvê-lo sem nos decidirmos a fazê-lo e, para que essa decisão seja tomada, há que resolver muitas outras que se nos põem simultaneamente e a diferentes níveis. Eu interrogo: Porque tudo é construir. Sou nesse caso uma escritora realista? Parece-me que sim. Tenho um Credo que enuncio: Creio na Matéria-Toda-Poderosa – no «real» portanto – e busco-lhe o significado, a dimensão, a forma, a tonalidade e a ausência de colorido, o som e o silêncio – quereria saber-me por instantes apreendendo-a totalmente, que a minha inteligência durante um ínfimo segundo compreendesse e me deixasse dizer: vejo, escuto – que a minha sensibilidade e imaginação, rodeando-a por todos os lados, às tantas acabasse mesmo por lhe desvendar um dos milhares de segredos tão ciosamente guardados. Não, um laboratório, com a sua rigorosa aparelhagem, não me seria de grande utilidade – a fantasia nega-se à rigidez dos métodos de uma investigação verdadeiramente científica. E eu desejaria sobretudo que o meu livro fosse Arte e não Pseudo-Ciência). E, porque compreender o «real» é caminhar no sentido da Metamorfose, o simplesmente Humano a transformar-se em Humano e Mental, a Irritabilidade em Inteligência, o Domínio da Natureza (longe de mim a ideia de fazer de Pitonisa, ou de Sábio-das-Sete-Partidas, ponho apenas afirmações como hipóteses, suposições como intuição poética – chamemos-lhe assim) – eu quereria compreender esse «real».

Que podem significar entretanto os termos realistas, neo-realista, surrealista, etc, senão denominações da mesma busca, da mesma vontade deliberada de transcender-se? (Os homens de todos os tempos inventaram deuses não por brinquedo ou desejo de mergulhar no obscurantismo, antes pelo contrário... Temos necessidade dos nossos deuses, ultrapassá-los dialecticamente, reinventar outros, sempre, «ad infinitum»).

Em que escola ou tendência me sinto integrada? Aguardo que alguém de boa-vontade queira catalogar-me, arrumando-me com toda a sem-cerimónia na prateleira que for mais conveniente.

- Acredita num nexo entre o romance e o local ou o tempo em que vivemos?

- O local onde hoje vivemos é a Terra inteira, um pequeno globo que os astronautas vêem atráves de écrans-visores e dizem ser raro e fantástico esferóide girando lento e imperturbável, brilhante e escuro, para lá de querelas e diversões, mares ou continentes. O «local» do romance, o seu «tempo» apoucam-se assim, visto, através da tele-objectiva, os indivíduos dão-se conta de um universo hertziano, onda média e curta até aqui desconhecido... E os diferenciados problemas do nosso «habitat» tornam-se menos diferenciados: em toda a parte os seres se agitam no mesmo febril Movimento: crescer e transformar-se. É certo: há zonas de cultivo especiais e... experimentais, onde a vida se processa num diapasão mais vibrante, outras onde se alongam ainda abutres de miséria e vergonha – que o Céu se compadeça e as criaturas arranjem unhas se defender e livrar do Mal, «amen». São os meus votos mais ardentes.

- Não será a sua resposta ainda o resultado de um meio social...?

- Acha que isto é ainda o resultado do meio social que nos condiciona? Um processo de evasão – quando tudo deveríamos fazer para assentar bem os pés na terra (terra essa que pode ser uma nebulosa qualquer...) – dizermo-nos a cada passo que há foguetões interplanetários prontos a largar para o Cosmos e levar-nos em belíssimo pasesio [sic] Pólo-Norte-Pólo-Sul-da-Galáxia? (Que afinal a Imaginação é o elemnto perturbador da pacata ou preocupada vida burguesa). Possivelmente...

- Projectos?

- Continuar a interrogar, insistir em contar histórias a pessoas mais ou menos desinteressadas, mais – quem sabe? – talvez às tantas acabemos por levar-nos a sério, mutuaente, narrador e ouvintes.

Preparo um romance em grande-estilo, quero dizer, uma longa narrativa, à antiga, realista ou não, continuação da mesma busca – noutro tom (para não maçar demasiado). Antes disso desejaria publicar uma peça de teatro, duas peças de teatro, três peças de teatro, que aguardam numa gaveta, prontas a passar ao prelo, à falta de cena...

Faço à Humanidade esta dádiva de imaginação – que não me foi solicitada, valha a verdade. Se a Humanidade do meu breve tempo, do meu reduzido espaço a recusar – que fazer de mim?

terça-feira, junho 10, 2014

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Sulphira & Lucyphur


António de Macedo (1995). Sulphira & Lucyphur. Lisboa: Caminho.

Não me consegui libertar da sensação de exotismo orientalista ao longo da leitura desta obra de António de Macedo. É um livro que se assume nominalmente como de ficção científica, mas que por dentro desta casca se revela algo mais exótico. As influências do esotérico e do maravilhoso são mais fortes do que a visão científica da FC. E assumidas, parece-me. Não se trata aqui de imaginar explorações espaciais em futuros distantes, mas antes criar uma sensação de forças cósmicas para lá da nossa percepção. Diga-se que é um conceito que tem o seu quê de época, esta FC pouco científica e muito esotérica herdeira da viragem cultural hippie e new age com toques do esoterismo da viragem de século.

O romance desenrola-se em dois grande cenários. Num planetóide aparentemente estéril do cosmos longínquo cinco emissários de Khalôm, essa imagem de cidade de elevação espiritual que Macedo tanto utiliza na sua obra literária e cinematográfica, descobrem-se no ponto fulcral de uma ofensiva de seres transdimensionais malévolos. Ou aparentemente malévolos, porque nestas coisas nunca há absolutos e a invasão parece ser uma tentativa de partilha que corre mal por desvarios da física hiperdimensional. Na Terra acompanhamos as aventuras de um fútil nobre lisboeta e de uma criadita engenhosa, que não são quem aparentam ser. São manifestações corporais de dois dos emissários cujos corpos se encontram no distante planetóide.

Estes cometem o crime supremo dos emissários, o apaixonar-se e quebrar com a sua dualidade a pentacularidade dos núcleos de emissários da distante Khalôm. São, no final do romance, punidos com exílio permanente na Terra, ocupando os corpos humanos que invertem lógicas sociais. Ele, por cá, é nobre e ela humilde, mas na gloriosa civilização de que são originários ela é princesa e ele humilde técnico. É um dos indícios da marcante ironia que Macedo coloca nas suas obras. A Terra, aparentemente um planeta atrasado de somenos importância, é de facto o ponto nevrálgico das guerras cósmicas que opõem as várias Khalôms e os invasores extradimensionais. O progresso científico é a arma da desespiritualização, o elemento que permite ao lado negro afirmar-se no universo. A tentação de descartar esta ideia como uma posição anti-científica do autor é grande, mas creio que errada. Macedo contrapõe com um personagem secundário que encarna tudo o que está de errado na superstição disfarçada como ciência, na figura de um médico que não se apercebe que os constantes ataques de tosse de que sofre talvez advenham do constante fumar e que prefere curar todas as maleitas com sangramentos e mezinhas. Os doentes curam-se, apesar do tratamento. Talvez o ponto onde o autor nos quer deixar a reflectir é na problemática da ética na ciência, dos excessos da hubris, nas visões dos progressos a todo o custo que não olham às consequências.

Após a leitura a sensação que fica é a de grande exotismo. Quer o onirismo do vasto cosmos quer as intrigas da Lisboa do século XIX, aqui manipuladas por forças ocultas que fazem dos homens ambiciosos os seus peões, estão mais dentro de sentimentos de deslumbre com o maravilhoso do que aventura com bases científicas. As fronteiras valem o que valem, são úteis para definir e reflectir, mas não nos deixemos espartilhar por elas. Obras que transgridem os limites de género são interessantes precisamente pela mistura de iconografias e elementos de diferentes tradições,abrindo horizontes ficcionais e, em essência, despertando sonhos. Algo que do que vou conhecendo da obra de António de Macedo, parece ser um dos seus principais pilares de força. Isso e a forte ironia que confere às suas narrativas.

domingo, junho 01, 2014

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«Villiers de L’Isle-Adam – um precursor» in JLA (1965)

Texto publicado no Jornal de Letras e Artes, 3 de Março de 1965, p. 6.
Transcrito para efeitos de memória bibliográfica.

Villiers de L’Isle-Adam – um precursor

Na colecção «Les plus belles page, Frantz-André Burguet apresenta Villiers de l’Isle-Adam. No seu prefácio, tão insólito como o modelo, não define a arte deste autor. Indica como um amador ideal, empenhado em apreender a sua complexidade, deve abordá-lo, pois, diz, nenhuma explicação (biográfica, histórica, psicológica) «pode esgotar a excepcional fantasia de Villiers».

Na sua selecção de textos, considerando que nenhum fragmento de «Eve future» ou de «Axel» podia dar uma ideia exacta dessas obras, que, para mais, «Eve future» constitui, na sua totalidade, «as mais belas páginas» de Villiers, preferiu propor-nos apenas narrativas integrais, bastando-se a si mesmas. Através desses contos, dessas novelas de diversa extensão, toda a variedade do talento de Villiers se impõe. E, também, toda a sua modernidade. O simbólico, o fantástico – quase já ficção científica – aliam-se num sentimento muito vivo da realidade. E, sem dúvida, perceberemos que, longe de ser um decadente, Villiers de l’Isle-Adam foi um precursor.
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«Novo filão para o cinema: a "Ficção Científica"», in JLA (1965)

Notícia in Jornal de Letras e Artes, 26 de Maio de 1965, p. 12.
Transcrita para efeitos de memória bibliográfica.

 
Novo filão para o cinema: a «Ficção Científica»


O retorno ao género «ficção-científica» pode já considerar-se um facto. Depois das primeiras películas com certo empenhamento e indubitável qualidade, realizadas nos Estados Unidos anos 1950-55, este género tinha, por assim dizer, enlanguescido, não conseguindo voltar a encontrar o nível convincente de «Quando os mundos chocam», «A guerra dos mundos» ou «A invasão dos ultracorpos», para citar apenas alguns títulos.

Agora, os recentes empreendimentos espaciais americanos e soviéticos e as conquistas da tecnologia, voltaram a impor com toda a actualidade uma nova orientação para a película de antecipação. É recente a notícia dos grandes preparativos que se efectuam na América para a realização de autênticos colossos que mobilizam as mais arrojadas inovações técnicas.

Mas também na Itália o novo género começou a contar com prosélitos, o que se verifica pelo anúncio de um programa que por certo não é inferior, nem em númeor nem em qualidade, ao americano. Um programa que poderá reservar muitas e gratas surpresas, dadaa alta cotização literária e crítica dos argumentos escolhidos e a grandeza dos meios empregados. Marcello Mastroianni decidiu aceitar o papel de protagonista no filme «A décida vítima», inspirado num best-seller americano.