quarta-feira, maio 14, 2014
Nota de Abertura à antologia «De Júlio Verne aos Astronautas», org. Lima de Freitas, 1965
Em quarta-feira, maio 14, 2014 por Luis F Silva
O n.º 100 da colecção Argonauta, publicado em 1965, consiste num volume duplo comemorativo (conforme indicado na capa e ficha técnica) designado por Os Melhores Contos de FC – De Júlio Verne aos Astronautas. Uma «antologia» que apresenta o «panorama das diversas tendências da ficção científica numa selecção dos escritores mundialmente representativos» (o sub-título consta apenas da ficha técnica). A selecção e tradução é de Lima de Freitas, que também assina a ilustração da capa.
O texto da contracapa elabora: «Comemorando o n.º 100 da Colecção Argonauta, uma iniciativa editorial sem precedentes. Pela primeira vez em Portugal, num volume duplo e pelo preço de um volume simples, um panorama completo da evolução da Ficção Científica desde Júlio Verne aos Astronautas. Entre centenas de autores, entre milhares de obras, foram seleccionados os contos dos escritores mundialmente mais representativos, formando uma antologia das diversas tendências do género literário mais significativo da nossa época.»
Os contos são, pela ordem com que surgem no livro: «O Eterno Adão» de Júlio Verne, «A Estrela» de H. G. Wells, «Um Outro Mundo» de J. H. Rosny Aîné, «O Templo» de H. P. Lovecraft, «R.U.R. Comédia utópica em três anos e um prólogo» de Karel Capek, «A Virgem dos Rochedos» de Poul Anderson, «Flores para Algernon» de Daniel Keyes, «Do Tempo e da Terceira Avenida» de Alfred Bester, «As Ruínas Circulares» de Jorge Luís Borges, «A Estrela» de Arthur C. Clarke, «Cor Serpentis» de Ivan Efrémov, «O Dragão» de Ray Bradbury, «A Arma» de Frederic Brown, «Instinto» de Lester del Rey, antecidos pela nota de abertura do organizador, que a seguir se apresenta na íntegra para fins de memória bibliográfica.
Nota de Abertura
Esta antologia de «ficção científica» foi feita para dar ao leitor o prazer delicioso de saborear umas quantas histórias engenhosas, originais e cheias de arrojada fantasia. O prazer da boa leitura será o seu maior mérito. O que não impede que certas linhas de pensamento sejam ilustradas ao longo do presente volume e proponham, ao amador de interrogações, vários tópicos para uma meditação proveitosa.
O Eterno Adão, trabalho póstumo do venerável Júlio Verne, abre a discussão da sobrevivência das civilizações, à mercê das forças da Natureza; H. G. Wells vai mais longe, em A Estrela, ao sugerir que não apenas a civilização pode desaparecer num cataclismo, mas o próprio planeta. O conto de Arthur Clarke, que também se chama A Estrela, por curiosa coincidência, fecha o ciclo das ameaças cósmicas com o aniquilamento de um sistema solar: está posta a questão da sobrevivência. Às forças naturais, de cuja grandeza inimaginável vamos tendo uma consciência cada vez maior, juntam-se as forças que o Homem pode desencadear: ameaça de que toda a gente tem hoje uma noção inquietante e que Frederic Brown considera, no seu breve conto A Arma, sob o ponto de vista da ética do cientista.
Quando o clássico chego Karel Capek escreveu a sua célebre peça «R.U.R.» (levada à cena, pela primeira vez, no teatro da Comédie des Champs-Elysées em 1924 e já representada em Portugal por um grupo de teatro dos estudantes da Universidade de Coimbra) ainda se ignorava o perigo atómico. Mas Capek – que nesta peça criou a palavra robot - tinha consciência dos perigos que advêm para a Humanidade da utilização amoral de certas possibilidades técnicas oferecidas pela Ciência. Que o Homem sobreviva no robot é um arrojo inesperado (sobretudo em 1920), fértil em implicações de toda a ordem. Lester del Rey, com o seu Instinto, acrescenta uma espécie de post-facio a Capek, cheio de inteligente ironia.
Mas não se trata, apenas, de saber como sobreviver, trata-se, também, de saber conviver. O célebre Efrémov – que é, também, um grande cientista (ou talvez fosse melhor dizer: que é, também, um célebre escritor) – aborda, de maneira emocionante, o contacto com outras inteligências e, mais do que isso, a colaboração das inteligências através do espaço e do tempo. Depois do pungente Flores para Algernon, solidão de uma fugaz inteligência, a proposta optimista de Efrémov é o sonho de uma vitória definitiva da sobrevivência através da convivência.
Os cavaleiros do passado, que atacam um futuro que não compreendem, estão condenados à derrota, como o ilustra O Dragão, do grande Bradbury; somos responsáveis pelo futuro, perante o futuro (Alfred Bester di-lo de um modo original e inesperado). Assim, pela utopia se tece a crítica do presente, pela fronteira estreme da fantasia se faz a prospeção dos grandes sonhos do Homem, pelo maravilhoso se procede à psicanálise do real quotidiano. Que é o real? Que mundos insuspeitos oculta a nossa miopia sensata? J. H. Rosny-Aîné, que foi da Academia Congourt [sic], melhor do que um longo ensaio filosófico, sugere-nos que espécie de mundos outros podem coexistir ao nosso, no seu conto Um outro Mundo. Lovecraft, mestre do fantástico, desce aos abismos submarinos do inconsciente. E o argentino Luís Borges, que foi proposto para o Prémio Nobel, pergunta se não seremos o sonho de outros. Talvez a razão seja o sonho da matéria; o que parece inegável é que o Homem cresce sonhando-se.
Que o leitor, ao longo desta antologia, possa sentir o prazer de ler e o prazer de sonhar, são os nossos votos.
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