quinta-feira, outubro 10, 2013

As furtivas pegadas da serpente

A ficção científica lusitana tem, inegavelmente, um padrão muito elegante e criativo. Os autores portugueses de fc&f que chegaram a publicação em seu país e aos quais tivemos acesso no Brasil, demonstram que há por lá uma vigorosa escola estilística, além de uma preocupação detalhista com a qualidade do seus escritos.
Dentre esses autores portugueses, e não são poucos, destaca-se a obra de António de Macedo, que há muitos anos logra colocar seus trabalhos nas estantes das livrarias portuguesas. Macedo tem uma carreira sólida no cinema, com nada menos que onze longas-metragens realizados, além de muitos curtas, telefilmes e séries para a TV. São seus, além de vários volumes com ensaios e peças teatrais, oito livros de fc&f, coletâneas e romances que trafegam por todos os gêneros fantásticos com igual desenvoltura, tais como O limite de Rudzki (contos, 1992), Contos do Androthélys (romance, 1993), Sulphira &Lucyphur (romance, 1995), A sonata de cristal (romance, 1996), Erotosofia (romance, 1998) e O cipreste apaixonado (contos, 2000), os dois últimos já resenhados neste blogue.
Estudioso da história portuguesa e das artes esotéricas da alquimia, Macedo aproveita toda a sua experiência para dar às suas criações um conteúdo diversificado e saboroso, no qual não se encontra qualquer descaso para com a originalidade dos enredos, a profundidade dos personagens e a qualidade literária. Não há lugar para  clichês na narração de Macedo, que demonstra não necessitar dos famosos "Protocolos de FC&F" que tanto deslumbram a maioria dos autores iniciantes - e alguns dos experientes também. As furtivas pegadas da serpente (Caminho, 2004) é, também, um trabalho emocionante e original.
O romance conta duas histórias paralelas e intercaladas. Uma mostra o dia a dia de uma equipe de filmagem a preparar um longa-metragem de ficção histórica, que é justamente a segunda história que se enlaça a primeira, sobre os dias de arrependimento do santo Frei Gil de Santarém - o médico e fidalgo Dom Gil Rodrigues – que viveu no Século XIII.
A lenda conta que esse católico fervoroso teve um passado herético, devasso e libertino, e teria em sua juventude feito um trato com o demônio, do qual se arrependeu mais tarde, atingindo dessa forma a santidade. Macedo sugere que foi o mito de Frei Gil, contado pelo Frei Batazar de São João em 1537, que inspirou o escritor alemão Goethe no seu clássico Fausto, escrito alguns séculos mais tarde e, por sua vez, também baseado na mitologia de um homem real, o Dr. Johann Faustus, que viveu no Século XVI.
Apropriando-se assim do mito faustiano, Macedo reconstrói os dias de arrependimento de Gil Rodrigues, a enfrentar os fantasmas de seu passado e a pessoa do demônio a atormentar-lhe. Além disso, tem que encarar a Santa Inquisição, que dá seus primeiros passos para eliminar a concorrência na Europa e está de olho em D. Gil, por conta de seu passado obscuro e seu inconveniente conhecimento alquímico.
Mas é a história da filmagem que de fato conduz a narrativa objetiva do romance. A roteirista Acácia é casada com Orlando, o diretor do filme e com quem Acácia digladia-se na elaboração dos personagens. Ele padece de esgotamento progressivo, na ânsia de atingir em sua criação artística os detalhes fugazes e transcendentais que lhe vão no espírito indeciso. Enquanto isso, os atores que representam os personagens no filme, incorporando o caráter de seus papéis, aprofundam ainda mais o conflito do casal levando-o a um impasse também no seu relacionamento íntimo.
As histórias não chegam a se concluir e não vão satisfazer o leitor mais acostumado com a fc&f de entretenimento, em que tudo se explica, o culpado é o mordomo etc. Não há veredito final, não saberemos de que forma o casal de artistas vai superar e conviver posteriormente aos acontecimentos dessa jornada, tampouco como teria sido a sequência da vida de Gil Rodrigues. São janelas abertas para o leitor ponderar.
António aproveita toda a sua capacidade como escritor e pesquisador na elaboração desta trama, que envolve magia, alquimia, história, filosofia, romance, drama e a sempre presente tragicomédia humana. Tudo é muito bem elaborado em se tratando de uma reconstrução épica, sobre a qual o autor mantém vigilante autocrítica na figura de uma personagem do staff  cinematográfico, uma especialista em história medieval que continuamente apresenta suas discordâncias com relação às soluções adotadas por Orlando na elaboração de seu filme, num curioso efeito metalinguístico.
As furtivas pegadas da serpente colabora com elementos valiosos para a construção de uma fc&f lusófona original, revelando o medievalismo ibérico que mal foi aproveitado pelos autores de ambos os lados do Atlântico.
Sem falar no enorme prazer que é reencontrar o modelo original da língua portuguesa, tão sofisticada e elegante, que dá um sabor especial a qualquer narrativa. O autor preocupou-se em me fornecer em privado uma chave para a tradução dos termos técnicos de cinema usados em Portugal, mas nem precisei dela, tudo é perfeitamente legível e há muitos mais pontos de identificação do que de estranhamento, o que reforça a tese que não é absolutamente necessário, quando da publicação no Brasil, "traduzir" o português lusitano para o brasileiro. Do jeito que é, está perfeito.

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