A Vocação do Círculo foi o segundo livro de ficção científica portuguesa (embora a esta designação devam ser por vezes acrescentadas aspas) a ser publicado na sua casa de eleição ao longo dos anos 80 e 90, a Editorial Caminho, e não se atrasou muito relativamente ao primeiro: o romance de estreia de João Aniceto, Os Caminhos Nunca Acabam. Editado no já longínquo ano de 1984, marca também a estreia de um dos autores mais interessantes da ficção científica e fantástico portugueses, embora a sua obra acabe por ser comparativamente escassa e, dada a sua ausência total há mais de uma década, pareça ter chegado ao fim, tendo-se o autor, Daniel Tércio, afastado do género quiçá definitivamente para se dedicar a uma carreira académica no âmbito da dança.
Mas enquanto durou foi interessante, e esse interesse surge logo no primeiro livro. De facto, e mostrando embora ainda alguma imaturidade estilística, A Vocação do Círculo é já um romance com alguma qualidade, e já revela as características principais do universo do autor, que seriam desenvolvidas com maior profundidade em livros posteriores. Nomeadamente: uma abordagem à ficção científica que tem mais de fantasista do que de científico, preocupações estilísticas bem marcadas e alguma fragilidade consistente nos remates das histórias.
Trata-se de um romance de realidades paralelas. Começa na Lisboa do nosso universo, ou pelo menos de um universo em tudo semelhante ao nosso, na qual o protagonista, Licínio Campos, descobre que tem um duplo que chega mesmo a usar o seu próprio nome. Os dois acabam por encontrar-se, trocam algumas explicações, mas tudo muda de repente quando se tocam e o Licínio original do universo em que a história começa se vê projetado para a Lisboa de um universo paralelo onde as coisas são em parte muito semelhante às que conhecia, mas por outro lado muito diferentes.
É neste universo paralelo que se desenrola a maior parte do romance. Aí, a ciência encontra-se bastante subdesenvolvida, mas em compensação a magia é corriqueira. Mas isso não impede que nesse novo universo existam duplos de muitas das pessoas que Licínio conhecia no universo de origem — e onde teria havido também um Licínio, cujo lugar ele acaba por ocupar, sem que se fique a saber lá muito bem o que lhe poderia ter acontecido. Esta é, adiante-se desde já, a mais séria falha lógica no enredo do romance... e a prova definitiva de que estamos em territórios algo distantes da ficção científica propriamente dita.
Na realidade, embora Tércio seja alguém corriqueiramente conotado com a ficção científica nacional, alguém que frequentou durante largos anos os círculos da FC portuguesa e esteve no grupo que deu origem à primeira associação portuguesa do género, a Simetria, a verdade é que a sua obra só muito raramente chega a ser inteiramente ciencio-ficcional. Já neste seu primeiro romance se aproxima mais de registos a que o mainstream literário chama seus, e o mesmo aconteceu em livros posteriores. A Vocação do Círculo é um romance bem mais próximo, quer pela sua temática, quer até pela abordagem literária que Tércio lhe dá, de alguns livros de Saramago, nomeadamente O Homem Duplicado, do que dos representantes mais sólidos da ficção científica portuguesa como o Terrarium, de João Barreiros e Luís Filipe Silva. É um romance fantástico, com algo de realismo mágico, uma forte dose de fantasia e só leves pitadas de FC e história alternativa, que transporta o leitor — e o protagonista — pela Grande Lisboa de três universos paralelos, cada um mais afastado do que o anterior daquilo a que a nossa sociedade entende por progresso, e que termina numa nota bucólica e conformista, em pleno paradoxo por esse conformismo vir de mãos dadas com um processo revolucionário, num tom de regresso a uma certa pureza da vida simples, pobre e sem ambições.
Com efeito, o tom superficial do romance é de rejeição do conhecimento e da ambição. Ficamos a saber ao longo do livro que todas as peripécias que Licínio sofre, todos os seus saltos entre universos, foram provocados por uma manipulação da "teia cósmica", algo em que não se deve mexer sob pena de desencadear terríveis consequências. É, pois, necessário derrotar os imprudentes — ou malvados, ou talvez arrogantes — que a tal loucura se atrevem, a fim de que o Cosmos e, em consequência, as vidas das personagens do romance, regresse aos seus eixos. Mas, paradoxalmente, esse regresso só é possível graças aos conhecimentos e à visão do mundo que Licínio traz do seu universo de origem, injetando assim conhecimento novo nos universos que visita.
Este carácter paradoxal é, talvez, a faceta mais interessante de uma história que, embora já mostre com clareza o potencial do autor, está todavia ainda longe daquilo que ele mostrou mais tarde. Um estilo ainda frágil já referido acima, diálogos pouco credíveis ou algo pueris, algum desequilíbrio na estruturação do romance e um fim que não está inteiramente conseguido põem este livro um patamar abaixo de Pedra de Lúcifer ou O Demónio de Maxwell. Embora seja leitura agradável, que não envergonha ninguém, não chega a ultrapassar a mediania.
Republicado, com alterações, de E-nigma (2007)
domingo, setembro 15, 2013
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