A narrativa de antecipação no mundo de hoje
por Tomás Salvador
A literatura como antecipação
Muita gente julgada sisusa qualifica depreciativamente a chamada literatura de science-fiction, ou ficção científica. Nesta literatura, como em todas, há livros bons, menos bons e maus, sofrendo os autores a mesma classificação. Se ninguém está apto para qualificar numa literatura nacional por haver lido só folhetins ou fascículos de quiosque, sem conhecer o zénite de cada cultura, resulta igualmente temerário qualificar depreciativamente uma literatura sem os conhecimentos adequados. Tão elementar resulta que se afigura de explorar.
Os objectivos mais correntes são: 1.º Resultam intranscendentes; 2.º A sua ciência é falsa e sem fundamento; 3.º Demasiadas guerras planetárias e sobre-humanas; 4.º Não se pode alcançar o que Wells, Verne e Huxley realizaram; 5.º Entretém mas não ensina.
Vamos ao debate
Sou um dos que estão convencidos de que a literatura de science-fiction é uma das mais importantes, moral e intelectualmente falando, do nosso tempo. Declaro-me mal preparado e não sei se saberei defender a acusada, mas tentarei. Não rebato todos os pontos citados, pois que começo a admitir que há uma má literatura do género; má é, simplesmente a de tiros, soco, raios desintegradores e monstros estrelares. A boa é a que se preocupa pelos problemas morais e sociais dum mundo agarrado ao debate.
Vaia! se a palavra escapou antes de tempo! Posto que está dita, sigamo-la. A ninguém se esconde que a sociedade moderna impulsionada pelos avanços tecnológicos e novos costumes delas derivadas, está sujeita a um debate. Dizer simples evolução não é suficiente. Isto indica latitude, adaptação. O debate que se prevê será enorme, consubstancial, inclusivamente assustador. Algo que não se sabe todavia girará em torno de um eixo determinado ou será uma explosão sem «contrôle» possível. Este debate – dito como palavra de fácil compreensão – transtornará o mundo moderno, ou melhor, futuro. Não é que preocupem os inventos, mas as suas consequências. Se o simples anúncio da energia nuclear dominada pelo homem provocou o nada desdenhável movimento existencialista do abandono perante o absurdo, e o medo às bombas «H» está provocando movimentos mundiais de protesto, imaginem o que pode trocar a psicologia das massas perante outras armas ou simplesmente outras reformas sociais? Não só o medo ou a morte podem provocar alterações, senão todo o contrário. Que sucederá no campo do trabalho no dia de amanhã, quando os robots, muito mais perfeitos que o homem e incansáveis, lhe roubam os postos de trabalho? Jornada de três ou quatro horas, quiçá ou menos? Possivelmente. Entretanto, que haverá com o seu ócio uma imensa humanidade desobrigada à luta? A diversão, a morte do tempo se converterá numa tarefa do Estado, quase como uma religião. Calculam as consequências morais de tudo isto.
A melhor literatura de science-fiction não trata de guerras interplanetárias, mas da estrutura moral e mental duma sociedade a que uma tecnologia avançadíssima colocará numa situação muito diferente da actual. Trata-se, simplesmente, duma teoria na sua mais ampla acepção. Se tiverem lido as narrações que o americano Walter M. Miller situa na abadia de San Leibomitz [sic] (século XXVII) compreenderiam a lógica que pode resultar uma nova Idade Média daqui a sete séculos. E lógico resulta também a sociedade monstruosamente socializada de Huxley no «Admirável mundo novo», ou a que desgarradamente descreve Ayn Rand em «Vivir». Para não falar da pura destruição intelectual de Arthur Clarke em «O fim da infância», a infância do intelecto humano, entenda-se. Tudo é possível, todas as derivações podem ocorrer, desde acabar um bairro imenso, sujeitos a racionamento estrito numa humanidade supervoada [sic], ou num mundo feliz, regido pela eutanásia e a eugenesia.
Inventário de incógnitas
Examinemos alguns dos pontos que condicionam a novela de ficção científica:
1.º Tecnologia em progressão geométrica; 2.º Moral estabilizada; 3.º Alto nível de vida e prolongamento da mesma; 7.º [sic] Problemas do trabalho; 8.º [sic] O Espaço como incentivo.
Não temos mencionado, propositadamente, alguns problemas políticos que deveriam tomar-se em consideração; os conflitos raciais, a coexistência do comunismo e capitalismo, o exacerbamento dos novos nacionalismos, a imigração rural, etc., que a não duvidar, e a menos de cem anos, têm de produzir conflitos. Temos afastado, também intencionalmente, os simples avanços materiais ou conquistas sociais de tipo regional, problemas que a sociedade pode resolver com os seus meios actuais. Temos desejado, pois, os que não podem considerar-se suspeitos de excessiva imaginação senão os que inexoravelmente devem produzir-se.
Ray Bradbury, em Farenheit 451 [sic], descreve uma humanidade onde possuir livros é um crime, onde caminhar a pé ou passear de noite é suspeito, onde a diversão mais generalizada é uma televisão a duas, três ou quatro paredes, até dar a impressão de estar incluido no mesmo que se está transmitindo. E são rebeldes os que não aceitam este estado de coisas. Teodoro [sic] Sturgeon, em «Mais que humano», apresenta a unidade que os alemães chamam Gestalt, ou seja a simbiose de elementos diferentes: um mongoloide calculador, um telepata, umas teleportadoras, um telequinesista. Em «Ciudad», de Clifford Simak, oferece-se o patético fim da Terra numas generalizações que chegam a uma progressiva falta de interesse pela vida a força dum aborrecimento do que tudo tem conseguido.
Poderíamos citar infinitos títulos. Alguns são impressionantes, pessismistas quanto ao futuro da Humanidade. Segundo esses, estamos trilhando o meso caminho que as civilizações anteriores. Charles Fort, um americano impressionante, escritor de uns livros que não se traduziram para castelhano - «Talentos salvajes», «Tierras nuevas», «La duda», «El libro de los condenados», «Lo!», possuía um arquivo com vinte e cinco mil fichas de casos ocorridos na Terra, mas em épocas passadas e outros em tempos modernos, desde chuva vermelha até cabelo crescendo no crânio de uma múmia, passando por gelo flutuante ou rodas de fogo sobre o mar.
Fort, que se está convertendo num mito entre certos círculos, idealizou certas teorias que deixavam em mantilhas a física quântica. Segundo o mesmo escritor, o tempo circula em duas direcções ou, melhor dizendo, em dois sentidos. Portanto, todo é verdade e todo é verdadeiro, desde o homem e seus circunstantes até às mesmas equações. Em consequência, a vida é contínua e descontínua, o mesmo que a luz, ou que é igual, vivemos não numa existência, que poderíamos chamar intermédia. Por existência intermédia podem dar-se equívocos, feitos do passado ou do futuro no presente, ou o contrário. «Todos os fenómenos do nosso estado intermédio – disse num dos seus epígonos, o biólogo Jacques Menétrier – o nosso quase-estado representam um intento de organização, de alcançar a realidade. Mas toda a tentativa de alcançar a realidade é posta proibitivamente pela continuidade, ou pelas forças exteriores, ou pelos feitos excluídos contínuos dos excluídos». Possivelmente encontrarão isto bastante obscuro, mas obscuro [sic] é também a aparição do homem sobre a Terra e ele está aqui. Nada se opõe a que creiamos em Deus e nos preocupem as nossas origens.
Retorno à Idade Média?
Contudo, nos meus anos de criança, os camponeses da minha terra costumavam chamar «pedras de raio» a certas matérias que encontravam ao arar. A ciência explica-nos bem claramente o que é uma descarga eléctrica. Mas os camponeses seguem crendo nas «pedras de raio». Porquê? Igualmente, na minha terra se crê que o cancro comia a carne, e, em consequência, um dos remédios era aplicar carne crua. A ciência explica-nos precisamente o contrário, uma proliferação de células. Mas a ciência não encontrou remédio para as mesmas teorias e os camponeses seguram-se à que adquiriram. Quer isto dizer que será cada vez maior o abismo entre o que a ciência explica e o que nós cremos? Com certeza.
Ou, o que é igual, caminhamos a passos agigantados ao que Pauwels e Bergier chamam o «retorno dos bruxos», ou será a outra Idade Média. Infinita ciência por um lado, massas embrutecidas entretidas em diversões para as manter estáveis. A ciência chegará a ser tão absurda que nos refugiaremos nas ilhas das suas crenças. Alguém inventará um pau voador e voltarão as bruxas, alguém dará a um automóvel a forma de uma carroça, alguém descobrirá a elegância de levar um espadim à cinta, e os vestidos serão túnicas gregas, e não faltarão políticos que descubram a monarquia como elemento permanente da continuidade dinástica. E os novos heróis serão os que a televisão, o cinema ou qualquer outro espectáculo descubra. Algo que agora se antecipa, mas que adquirirá caracteres monstruosos no futuro.
Alguém pensa que nestas condições os escritores de ficção-científica estão elaborando uma literatura de terceira categoria? Preocupar-se do futuro humano é perder o tempo? Instituir as terríveis condições de ser humano, ante o debate, é literatura de evasão? Os escritores de todos os tempos têm admitido o complexo filosófico da Utopia, quer dizer, o processo humano e social da humanidade em determinadas circunstâncias. Dado que o existente é o real, sonhar o perfeito é plausível, se bem que enganoso. Todas as filigranas trazidas pela Utopia, ou as deduções da sua complementar Utronia (ciência do que pode ser se o que se passou não tivesse passado), não muda a estrutura do mundo.
Da mesma forma é possível, quase certo em novecentas e noventa e nove centésimas sobre mil, que a literatura de antecipação científica não mudará o futuro. O homem é assim e gosta de se enganar repetidas vezes. Porém, imaginem o que seria literatura de Quevedo, Chaucer, Goethe, Dante, Molière e tantos outros que descreveram «antecipações». Fora os textos curiosos, eficazes ou não politicamente falando, teríamos um impressionante quadro de valores humanos e morais; poderíamos fazer comparações oportunas, teriam criado escola e quando menos esperássemos teríamos aprendido; que os problemas estéticos, sociais, morais ou filosóficos nascem antes que as circunstâncias.
Seria pueril fazer uma lista dos inventos e teorias que os escritores têm antecipado, desde Cyrano a Wells, passando por Huxley, Lovecraff [sic] ou Werfell, sem esquecer dos modernos. Particularmente, assombraram-se, e, às vezes, assustaram-me. Sofro ao pensar o que será a Humanidade dentro de cem ou duzentos anos. O que será quando os frenólogos despertarem a metade do cérebro que não utilizamos. Creio num mundo de telepatas, capacidade humana já pressentida.
A literatura morrera
Creio na morte da mesma literatura neste mundo, pois, que objecto terá a palavra escrita quando até a falada desaparecerá, anulada por uma superlinguagem íntima, superveloz, que necessitará de analogias em vez de palavras construidas laboriosamente letra a letra? Muitas, infinitas coisas, se levará à corrente do futuro, algumas delas muito amadas. Por isso, o mundo do futuro preocupa alguns cérebros. Nem todos acertarão nas suas teorias mas apenas alguns. Até o homem da rua, com que se para a conversar, comprenderá que «não será igual nessa altura». Porquê? Como? Quando?
Sucedeu o mesmo nos tempos passados? Horbiger, autor de «La cosmogonia glacial», assegura que há milhões de anos a terra tinha quatro luas. E que uma a uma foram caindo na Terra, provocando cenas catastróficas. E que a única que ficou cairá também. E que então a Terra, convertida em gelo, cairá no Sol. Ou será que, de certo modo, o sacrifício das luas compensava a falta de gravidade da Terra. E quando não quiser esta reserva, adeus, berço do homem. E apresenta como provas as lendas mitológicas, a lembrança de muitos heróis, ligados às mais antigas literaturas do mundo, e às incríveis estátuas da ilha de Páscoa e [ilegível] infinitos fenómenos não ostante explicados.
Em todo o caso, vivamos ou não a última civilização ecuménica é indiscutível que estamos nas fronteiras do Debate. E que a literatura de antecipação está desempenhando um papel cuja importância deixamos ao critério de cada um.
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