Corria o ano de 1984, e a Rolim estava no segundo ano da sua Coleção Fantástico, uma coleção de livros quase sempre bastante curtos, onde se misturavam velhos clássicos do fantástico português, muitos deles republicados da Antologia do Conto Fantástico Português, com obras contemporâneas. O âmbito era o de um fantástico mais chegado ao mainstream, com pouca tolerância para coisas mais esquisitas. A ficção científica, por exemplo, praticamente não tinha nela lugar. Mas o insólito tinha, o surrealismo também, e uma certa espécie de horror igualmente.
É aí que se enquadra esta A Condecoração de Orlando Neves. Um livro finiho, apenas com 55 páginas, que apesar disso se subdividem em 20 pequenas histórias, com tamanhos entre o mini-conto e a vinheta. Mário-Henrique Leiria é nelas uma influência clara, quer no tocante à dimensão, quer no que diz respeito a toda a abordagem literária: o pendor pela ironia, o surrealismo de alguns deles, o macabro de outros (ou dos mesmos), o insólito. E Orlando Neves, que foi, na literatura portuguesa, mais poeta do que contista, não é tão bom. Mas vamos por partes.
Literalmente. Falemos dos contos, embora sem entrar em grandes detalhes.
A Condecoração começa com... A Condecoração, uma vinheta insólita e macabra sobre uma peculiar condecoração oferecida a um brigadeiro por feitos de bravura em combate. É um continho que consegue ser arrepiante. Segue-se A Caridade, outro conto insólito e macabro que faz lembrar o ambiente das coisas do João Seixas publicadas no E-nigma. Vem depois O Carteiro, mais um continho insólito, ainda que desta vez não muito macabro, que se debruça sobre um carteiro sem vida própria.
Na sucessão de histórias chega em seguida O Natal, um pequeno conto algo surrealista sobre a inversão de papéis humano/não-humano. Um conto bastante bem construído. Depois, O Homem Apressado é um conto surrealista com toques de horror sobre um homem que se vai devorando aos poucos a si mesmo. Um Bom Pai é outro conto com toques de horror sobre o regresso a casa de um pai de família psicologicamente pouco estável. E A Sombra, é um conto fantástico sobre a morte. Todas estas histórias estão bem conseguidas.
Segue-se O Asseio, um conto muito pequeno que consegue a proeza de ser ao mesmo tempo surrealista, macabro e divertidíssimo. Digo-vos apenas que é sobre um nariz. Isso mesmo: um nariz. Muito bom. Também bastante bom é Os Pés, mais um conto insólito e algo macabro sobre um homem que meteu na cabeça que iria arranjar maneira de se ver todo e completo ao mesmo tempo.
Depois chega O Espelho, uma variação bem concebida daquelas histórias em que o espelho não se comporta exatamente como é suposto. E As Luvas, um conto subversivo sobre um presidente arrivista de que não gostei grandemente, pois a comparação com Mário-Henrique Leiria é inevitável, e neste tipo de conto o Mário-Henrique é imbatível. Mas melhora logo: A Mãe é um conto fantástico e bastante bom sobre um homem de meia-idade que se vê de súbito transplantado para a infância.
Em seguida chega A Fuga, um conto brilhante, o melhor de todo o livro, entre o surrealista e o horror, sobre um condenado que foge da prisão de uma forma inédita. Apetece contá-lo, mas não é possível: cada bocadinho adicional de informação que seja dado é um pouco do impacto do conto que se perde.
O Comboio é surrealismo puro, mas não gostei muito: pareceu-me que a ideia exigia um texto maior, talvez com o dobro ou o triplo da extensão. Os Destroços, é um excelente conto de fantasmas, em que o horror (embora bem-humorado) se exerce não sobre quem os vê, como o cliché manda, mas sim sobre o próprio fantasma.
Daqui para a frente, infelizmente, a qualidade geral cai um pouco. Por outro lado, já só faltam cinco histórias.
O Telefone é a primeira dessas cinco; trata-se de um conto fantástico em que a personagem telefona (obviamente) e do lado de lá lhe responde alguém demasiado parecido consigo mesmo. Deste não gostei muito: achei-o demasiado previsível. Segue-se A Redução, mais um dos pequenos contos de Orlando Neves que se situam entre o horror, o fantástico e o surrealismo. Aqui vamos encontrar uma gravidez anormal, e, embora outros contos do livro sejam melhores, este também não é mau.
O Feliz Parto é um continho insólito sobre uma mulher cujas sucessivas gravidezes redundam sempre em abortos. Obsceno, o penúltimo conto do livro é também o maior, mesmo sem ultrapassar a dimensão de vinheta. Nele, um enviado do Vaticano comete um faux pas divertido num país de usos culturais muito peculiares. Ambos estes contos estão bem conseguidos, mas nenhum dos dois é tão bom como histórias anteriores. Por fim, O Homicídio é um pequeno conto fantástico e irónico que se lê bem mas não é nada do outro mundo.
Como se vê, A Condecoração é uma coletânea que contém alguns contos muito bons e é em geral uma boa leitura, apesar de fraquejar um pouco para o final, o que, em meu entender, é sintoma de deficiente organização dos contos, pois o impacto de um livro de contos também depende da forma como começa e acaba. Insere-se numa abordagem literária que tem dado muitos e bons frutos em Portugal, e que ainda hoje tem seguidores, embora talvez mais entre os escritores do que propriamente junto do público, que se mostra em geral avesso a contos e mais ainda, por maioria de razão, a contos muito curtos. Estes costumam mesmo ser mais apreciados pelo público de poesia do que pelo de prosa. E muitas vezes é pena, pois os escritores portugueses têm jeito para este tipo de coisa, e este livro é um bom exemplo. É divertido, é arrepiante, por vezes faz pensar, está bem escrito. O que há para não se gostar?
Texto original, baseado em notas deixadas na Lâmpada Mágica em 2008.
terça-feira, setembro 24, 2013
Uma visita ao fecundo reino da mininarrativa portuguesa
Em terça-feira, setembro 24, 2013 por Jorge Candeias
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