quinta-feira, setembro 12, 2013

Uma máquina que voa através do tempo

Ao contrário do que possa pensar quem tem os olhos virados exclusivamente, ou quase, para as coleções de FC, o brasileiro Bráulio Tavares não publicou, em Portugal, só na coleção azul da Caminho, nem se limitou a editar entre nós as suas coletâneas de contos. Começou por fazê-lo, é certo, mas também produziu um romance, que os responsáveis da editora resolveram publicar em 1997 na coleção "Uma Terra sem Amos", coleção esta que se dedicava fundamentalmente ao mainstream, e na qual se editavam obras consideradas "mais literárias" do que as de FC.

Mas curiosamente, A Máquina Voadora está mais próxima da ficção científica do que algumas das obras incluídas na coleção de ficção científica. Refiro-me, entre outros livros, a Universal, Limitada, de Isabel Cristina Pires, ou aos de Terry Pratchett (As Três Bruxas e Mort).

Este romance de Bráulio Tavares, segundo o seu subtítulo, conta a "história do sapateiro Gamboa, e da sua maravilhosa máquina de voar". Nele, Bráulio regressa a um cenário que já tinha visitado pelo menos uma vez, quando contou a História de Maldun, o Mensageiro (conto incluído n'A Espinha Dorsal da Memória): a Serra do Calabouço, local inventado situado algures entre o sul de Portugal e a Andaluzia, na época em que cristãos ainda se iam cruzando com muçulmanos nesta zona do mundo.

A história que nos é contada é a do sapateiro Ramiro Gamboa, um homem que usa a sua arte para sobreviver mas tem os olhos postos muito longe dos seus horizontes rurais, um homem consumido por uma curiosidade insaciável que poucos conseguem compreender e que lhe condiciona uma parte significativa da vida. Gamboa sente-se fora do seu tempo, e tem visões de lugares muito diferentes, mas talvez não muito distantes.

A propósito da história de Gamboa, surgem também histórias protagonizadas por outros membros da família, especialmente o filho, Nuno, a sua mulher, Damiana, e o pai desta, Eleazar, um homem estranho que é, em muitos aspetos, semelhante a Ramiro, e ainda o pai deste, Jofre de seu nome.

Cruza-se também a história de Ramiro Gamboa com a da própria Serra do Calabouço e da cidade de Campinoigandres, também ela inventada, onde habita um grupo de nobres muçulmanos, núcleo central de uma espécie de sociedade secreta de protetores do conhecimento: os Pensadores.

Acabamos por descobrir que o conhecimento protegido pelos Pensadores tem em comum com aquele que Ramiro Gamboa persegue o facto de não pertencer ao tempo de ambos. Tudo acaba por desembocar na Máquina Voadora que dá nome ao romance. Esta fora inventada e construída por Jofre. Mas nunca é descrita com clareza, embora se sugira semelhante aos esboços de Da Vinci, ou até aos primeiros veículos voadores mais pesados do que o ar dos primórdios da aviação, no início do século passado.

Mas como haveria uma máquina voadora como aquela na Península Ibérica em plena época da Reconquista?

Viagens no tempo? Teria Jofre vindo do futuro? Ou teriam vindo do futuro os documentos em que ele se baseou para a conceção da sua máquina?

Não se percebe bem. O romance é ambíguo, e esse facto é causa de boa parte do seu fascínio.

De resto, trata-se de uma história muito bem construída e escrita, que em subtexto acaba por debruçar-se sobre a natureza do conhecimento, mostrando como ele é precioso, como encerra joias, e como pode ser também perigoso quando utilizado de forma inadequada. Uma história que prende o leitor aos mistérios que cria e vai desvendando, a pouco e pouco, nunca chegando, no entanto, a revelá-los por completo, deixando em vez disso que quem lê tire as suas próprias conclusões a partir das pistas que são espalhadas ao longo das quase 250 páginas que o livro tem de extensão. No ambiente, e também no tema, faz um pouco lembrar o Memorial do Convento, de José Saramago, embora a concretização seja muito diferente da deste êxito maior do nosso Nobel.

Uma coisa, entretanto, é certa: Bráulio Tavares é claramente um dos melhores escritores ligados à ficção científica de língua portuguesa, e este seu livro, talvez sem ser propriamente ficção científica mas não se afastando muito, é bem capaz de ser o seu melhor livro.

Republicado com alterações do e-zine E-nigma (2003)

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