domingo, setembro 29, 2013

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A FC e a lusofonia

Sendo esta minha primeira colaboração para este blog, imaginei que seria oportuno escrever não propriamente sobre a FC lusófona, mas sobre alguns aspectos da relação entre FC e lusofonia. O mundo da FC é um universo em língua inglesa, entrelaçado ao nosso de portugueses e brasileiros, mas ao qual dificilmente temos acesso ativo. Somos apenas observadores, espectadores e compradores. Os mais empolgados tornam-se fãs, divulgadores, entusiastas, aficionados, e em última análise garotos-propaganda voluntários das editoras e dos estúdios. Mas é um mundo onde se fala língua inglesa, como o mundo do rock. Tudo circula e se energiza na ponte US/UK. O restante do mundo produz até coisas eventualmente do mesmo nível, mas ninguém fica sabendo. FC brasileira ou portuguesa é como rock turco ou argentino.

Para muitos leitores da minha geração a FC está inextricavelmente ligada à lusofonia, por obra e graça da Colecção Argonauta, que é um objeto de culto em nosso país. Devido a sua antiguidade, regularidade e escolha de títulos geralmente boa, impelia ao ato de colecionar propriamente dito. Conheci a Argonauta no número 55, Os Frutos Dourados do Sol de Bradbury, e daí em diante comecei a comprar tudo que encontrava pela frente. Isso fez com que para todos nós o vocabulário da ciência e da FC ficasse contaminado de protões, foguetões, fatos espaciais e outros termos portugueses.

A psicologia atual tem afirmado que textos literários de alto nível de estranheza (poesia surrealista dos anos 1920, por exemplo) fazem bem ao cérebro, certamente porque acionam todos os seus recursos para explicar o inexplicável. Os romances de FC da Argonauta eram cheios de palavras e construções estranhas que não sabíamos a quem atribuir, se aos portugueses, se aos nativos de Fomalhaut-450. Esse efeito de estranhamento verbal, essa sabotagem permanente das nossas categorias de pensamento consecutivo e de verbalização, esse ver-e-não-ver o que estava sendo dito, passou a fazer parte da FC. Voltei a ter essa sensação quando li a série do The Book of the New Sun de Gene Wolfe, cheio de arcaísmos preciosos e de termos inventados. Parecia um livro de Portugal traduzido ao inglês.

Essa prosa (fosse ela norte-americana, inglesa, não importa o quê) fazia da estranheza uma beleza a mais, como nesta inesquecível abertura de Ortog de Kurt Steiner (número 66 da Argonauta):

O sol acabava de desaparecer por de trás dos fetos arborescentes. Do humus subia um vapor onde turbilhonavam moscas douradas do tamanho da palma da mão.

Dâl parou junto de um alto sigilário. Olhou a névoa vinda das profundezas vegetais e baixou para o rosto a máscara nocturna de três aplicações. Avançou então para a lomba, em direcção ao ponto donde parecia vir o urro.
 
Se um indivíduo não é capaz de transpor um texto assim, jamais será leitor de FC. Quando li isto pela primeira vez, eu certamente não sabia o que eram “fetos arborescentes”, “humus”, “sigilário” (não sei até agora) e “lomba”. Pelo que me dizia respeito, bem poderiam ser invenções guimarãesrosianas do autor. Mas havia antes dessa questão a questão da sonoridade das palavras e do modo como pareciam fazer bem à frase, independentemente do que significavam.

E, para além desse impacto imediato de um jorro de palavras oscilando freneticamente entre o comum, o não-comum e o insólito total, havia o quê? As imagens poderosas da FC, feitas de palavras absolutamente anódinas: “moscas douradas do tamanho da palma da mão”, “máscara nocturna de três aplicações”. Duas expressões tipicamente FC, uma da natureza, outra da tecnologia, sendo uma delas fantástica mas capaz de ser evocada imediatamente, e a outra algo cuja natureza apenas se entremostra, deixando em aberto essas “três aplicações”, cuja natureza é um desse mil pequenos mistérios que um texto de FC vai semeando e em seguida respondendo, sem cessar. (Sem falar nesse “urro” que atrai o personagem: o perigo, o mistério, a consciência de uma ominosa presença.)

Um texto de FC brasileiro talvez traga um número semelhante de sustos e incertezas (e de eventual triunfo cognitivo ou prazer estético) a um leitor português. Porque são três, os idiomas que se misturam: os dois dos países e o do gênero.

Quem já traduziu FC do inglês para o português já deve ter experimentado uma frequente sensação de inadequação, de falta de sintonia entre dois vocabulários. Muitos termos compostos em inglês soam maravilhosamente, mas se transpomos diretamente seu sentido para nossa língua isso às vezes resulta numa fórmula impronunciável, ou pelo menos de aparência canhestra. Isso não quer dizer, porém, que boas saídas não podem ser encontradas. Gostaria de saber quem foi o primeiro a traduzir “bug-eyed monster” (“monstro de olhos de inseto”) por “monstro de olhos esbugalhados”, forma menos literalmente fiel mas mais auditiva e mais visual.

Se coçamos a cabeça e passamos uma noite em claro buscando um termo equivalente a “conceptual breakthrough” ou a “sense of wonder”, deveríamos dar nossa própria contribuição, com termos portugeses e brasileiros, para esse linguajar. Seria honroso termos um conceito cujo nome original – em português – fosse aceito pelo banco-de-dados do gênero, e tivesse que ser traduzido para a sua língua oficial. Não somente a ficção lusófona mas a crítica lusófona tem o direito, a possibilidade e o dever intelectual de contribuir com esse diálogo multicultural trazendo novas palavras e novas expressões.

sábado, setembro 28, 2013

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O cipreste apaixonado

O cipreste apaixonado é uma antologia de contos e novelas do escritor e cineasta português António de Macedo publicado em 2000 pela editora Caminho, de Lisboa.
Cinco trabalhos compõe o volume: "O cipreste apaixonado", "So long Clementine", "Senhoras partem tão tristes", "As baratas morrem de costas" e "Terminus Peripherium". Cada um deles tem seu próprio universo, variando em gênero e entonação, mas o estilo de Macedo dá conjunto a obra.
"O cipreste apaixonado" abre a antologia e toma quase a metade do volume. Conta a história misteriosa de uma jovem senhora chamada Natália, recém-divorciada, que se instala numa casa de campo antiga, mas bem cuidada, cercada por um jardim amplo e viçoso, com árvores centenárias e uma fonte algo tenebrosa. A história começa quando Natália decide consultar um amigo psicólogo e contar-lhe sobre alguns distúrbios que lhe assaltam, sonhos violentos e desenfreados que parecem seguir um padrão coerente. Uma vizinha, versada em artes místicas, também se interessa pelos surtos de Natália e as investigações vão levar todos os personagens a um torvelinho de forças poderosas descendentes de dramas antigos e alimentadas por terrores e tragédias ao longo dos tempos.
O segundo trabalho da antologia é "So long Clementine", a história mais aproximada da ficção científica, com uma curiosa estrutura pós-moderna. Não há uma introdução tradicional e a história começa em ação plena, com um casal humano em fuga desesperada por um complexo labiríntico árido e absolutamente escuro. Paredes nuas, chão metálico, escadarias gigantes, montanhas de esqueletos, becos sem saída e, a persegui-los, uma horda de monstros e máquinas de extermínio armada até os dentes, dos quais os fugitivos apenas escutam os sons aterrorizantes cada vez mais próximos. Aos poucos o panorama se descortina enquanto a fuga vai ficando mais e mais alucinante, com confrontos entre os fugitivos e seus algozes em escaramuças de tirar o fôlego.
A seguir aparece "Senhoras partem tão tristes", um conto delirante sobre um contato imediato que se emaranha com o drama romântico de um casal de cientistas numa viagem de automóvel. A cada corte narrativo, um novo panorama se abre, numa história enigmática. Viagem no tempo, espiritismo, multidimensionalismo, história alternativa e muitas outras explicações são sugeridas pelo autor.
A quarta história é "As baratas morrem de costas", sátira tecnofóbica narrada em primeira pessoa, na qual o que é aparentemente um cientista conta como o mundo acabou a partir do momento em que a humanidade instalou máquinas de viagem por teletransporte. Aconteceu que os corpos teletransportados perdiam a ligação com suas almas humanas no processo e estes eram tomados por demônios que passavam a realizar todo o tipo de coisas absurdas próprias dos demônios. O narrador da história conta que criou então um método alternativo que, ao realizar o transporte, substituía o ferro do sangue por cobre, impedindo a invasão demoníaca. Mas a substituição causou efeitos colaterais ainda mais indesejáveis. 
Fechando a antologia temos "Terminus Peripherium", versão revisada de um trabalho publicado na antologia bilíngue Inconsequências na periferia do império, de 1996. O conto usa da metalinguagem, mesclando duas narrativas: uma em terceira pessoa (a narrativa do autor) e outra em primeira pessoa, que é uma história que está sendo escrita pelo protagonista, autor profissional de histórias de terror pressionado pelo prazo de entrega. Mas a história começa a extrapolar e os personagens por ele imaginados começam a se materializar, rompendo a membrana que separa a realidade objetiva da imaginada.
Para contextualizar o fenômeno, Macedo distribui uma série de argumentos metafísicos através das falas de estudiosos que participam de um encontro periódico de especialistas no oculto, que soa muito parecido com certas reuniões de um outro tipo de especialistas. Metalinguagem dupla.
O cipreste apaixonado é um livro agradável, divertido e muito equilibrado: todos os contos são bons ou ótimos. O autor não assumiu o universo lovecraftiano, mas pode-se identificar sua influência na construção de alguns dos cenários e climas.
Um livro que eu recomendo, embora de aquisição difícil no Brasil.

sexta-feira, setembro 27, 2013

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Sobre juventude, inexperiência, ficção curta e oportunidades mal aproveitadas

Em 2003, um jovem de nome Nuno Neves atirou o barro à parede, arriscou-se a apanhar uma nega, e conseguiu publicar pela Presença, à época a mais importante editora portuguesa presente no mercado da FC, um romance relativamente curto a que deu o nome de O Sentido Latente. Um romance, pelo menos em teoria, de ficção científica.

Era iniciante nestas lides: nunca se tinha visto o seu nome por lado nenhum nos meios ligados à FC portuguesa, e a verdade é que nunca se voltou a ver. Do seu nome, a notícia que se tem vem de um punhado de traduções, de outro de ilustrações e de alguns textos ligados a sistemas de informação geográfica. Estranha mistura, dirão. Mas Nuno Neves é um nome razoavelmente comum em Portugal. Nada garante que tradutor, ilustrador e engenheiro sejam a mesma pessoa que um dia tentou escrever ficção científica.

Não, não me enganei. A palavra certa é mesmo tentou.

O Sentido Latente é um romance de estreia. Não só é um romance de estreia, como o seu autor era quando o escreveu muito novo, com tanta inexperiência como atrevimento. Ora, se o atrevimento é de saudar, se costuma ser construtivo, a inexperiência tem o desagradável hábito de levar a erros mais ou menos graves, de fazer estragos. E é precisamente isso que acontece com este livro. O Sentido Latente, mais do que um romance de ficção científica é um excelente exemplo do mal que faz escrever romances sem passar antes pelo tirocínio dos contos e aprender neles a gerir coisas tão fundamentais para um escritor como o ritmo narrativo e o desenvolvimento do enredo. Entre outras coisas.

Não me entendam mal: Nuno Neves é claramente talentoso. O problema básico deste livro não reside na ausência de talento, ou mesmo em alguma espécie de incapacidade no manuseio da língua portuguesa, pois se Neves não escreve particularmente bem naquilo que diz apenas respeito ao texto em si, também não escreve mal. Há ali algo de valioso, um potencial, e terá provavelmente sido por isso que conseguiu ser publicado. Mas a verdade é que o livro é mauzinho, revelando com demasiada clareza a verdura do autor, tanto na conceção da narrativa, como na parte ciencioficcional da história, como nos diálogos, como até numa grande confusão sobre qual é, afinal, o tema básico da história que pretende contar.

Se um autor pretende escrever ficção científica, não é bom restringir a FC a uma fina película superficial até pelo menos metade do livro, só começando depois disso a aprofundar mais o futurismo das ideias. Ou seja, não convém reduzir a FC a folclore algo incongruente, e para mais bastante antiquado, mostrando que Neves até pode ter tido algum contacto com a ficção científica através do cinema e da televisão, mas com toda a certeza não leu muitos livros do género antes de arregaçar as mangas para escrever o seu.

Se um autor pretende escrever histórias protagonizadas por investigadores policiais tarimbados e eficientes, os melhores disponíveis para investigações delicadas, não convém pô-los a falar como miúdos do secundário. Se o faz, não há credibilidade que resista. Porque a credibilidade das personagens começa no que fazem, mas logo depois vem o que dizem e como dizem o que dizem. Ninguém acreditaria num campónio analfabeto a recitar lírica camoniana, não é verdade? Pois polícias de topo a conversar como miúdos de 16 anos é parecido.

Para piorar as coisas, há questões graves com a estrutura narrativa, e deixemos para outras conversas o ritmo narrativo. Se o tema de um romance, aquilo que lhe confere o título, é um tal sentido latente e a sua natureza, é muito má ideia dedicar-lhe uma dúzia de páginas, se tanto, ocupando as outras duzentas com uma investigação policial sobre o assassínio do filho de um magnata da engenharia genética, sem que por um só momento sequer se sugira algo levemente relacionado com o suposto tema do livro. Ainda por cima, uma investigação policial feita quase inteiramente de conversas, quase desprovida de qualquer tipo de ação, o que não será um problema em si mesmo mas acaba por exacerbar as outras falhas.

Quanto mais romances destes leio mais firme se torna a minha convicção de que é absolutamente fundamental que os escritores que pretendem dedicar-se à FC comecem a treinar em ficção curta, porque só na ficção curta podem fazer experiências (e falhar, pois falhar é inevitável por maior que seja o talento com que se parte), dedicando a elas um investimento razoável de tempo e esforço. E mais firme se torna a minha convicção de que vale muito mais que as editoras invistam na publicação e os leitores na leitura de coletâneas, antologias, revistas ou contos individuais do que de romances como este. Especialmente os leitores. São eles o fulcro de tudo. São eles o mercado. E se houver mercado, as editoras vão atrás. Leiam contos. É melhor ler bons contos que maus romances.

Porque é isso que aqui temos: um mau romance. Um mau romance fruto do esforço honesto de um jovem talentoso, que nele terá certamente investido meses da sua vida e que, provavelmente, se queimou como escritor ao fazê-lo. E é pena. É sempre pena quando se perde talento. A Nuno Neves bastar-lhe-ia, julgo, escrever alguns contos, testar ideias, aprender a encadeá-las melhor em ficções curtas, pois os textos curtos simplificam a tarefa. E ouvir as pessoas a falar. Não os seus amigos da escola, mas as pessoas de outras idades e de outros ambientes sociais. Bastar-lhe-ia isso para poder desenvolver o talento que tem e produzir material válido para a FC portuguesa, ou talvez até para a literatura em geral.

Assim, tão depressa chegou como desapareceu, deixando para trás um mau romance. Duvido que ele próprio ache que valeu a pena.

Texto original, concebido a partir de notas deixadas na Lâmpada Mágica em 2009.

quarta-feira, setembro 25, 2013

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Ficções Científicas e Fantásticas


Edições Chimpanzé Intelectual

Portugal é um país inclemente para os fãs de Ficção Científica, com um panorama editorial de edições de obras traduzidas quase inexistente, salvo honrosas excepções, e um núcleo importante de bons autores nacionais de FC que vai publicando quando tem raras oportunidades. Resta ao amante da literatura que ousa pensar em frente limitar-se às edições estrangeiras, à importação de livros e correr para as livrarias sempre que surge algo de novo editado por editoras nacionais. O que, como bem sabemos, é raro, apesar dos esforços das comunidades de fãs e as suas inúmeras mas pontuais iniciativas.

Antologias de contos de FC são obras perfeitamente banais em mercados onde a FC assume importância comercial. Banais não pelos conteúdos mas pela elevada quantidade de obras disponíveis. Estas assumem muitas vezes o papel de divulgadoras de novos autores, reunindo obras de autores mais consagrados com contos de autores desconhecidos. Mas isso é noutros lados. Cá pelos nossos,sempre que alguma coisa nova sai para os escaparates até se lançam foguetes.

Editada em 2006 pela Chimpanzé Intelectual, a antologia Ficções Científicas e Fantásticas reúne contos de FC e Fantástico de autores portugueses, provando, mais uma vez, que existe uma vibrante comunidade de autores que se dedicam estoicamente à FC como forma de expressão literária. Fiel ao espírito das antologias, reúne contos de autores consagrados de FC e Fantástico com contos de outros autores, geralmente ligados às andanças de literaturas mais convencionais que para esta antologia deram uma mãozinha ou desencantaram experiências do fundo da gaveta.

Entre os autores que dedicam a sua carreira à literatura fantástica, destacam-se as excelentes contribuições de David Soares, o escatológico Allan Poe dos tempos contemporâneos portugueses, Luís Filipe Silva, cuja prosa concisa nunca deixa de me surpreender pela clareza, e João Barreiros, possivelmente o grande mestre da FC portuguesa, com os seus habituais maquiavelismos imaginativos. Autores menos conhecidos, como Miguel Vale de Almeida e Miguel Neto, mostram novas promessas da literatura fantástica nacional, talvez ainda a precisar de alguns acertos, mas a abrir o apetite para novas experiências. Já nas contribuições de autores ligados a outros géneros literários, nota-se um certo espírito leve que trai uma profunda falta de seriedade que se traduz uma abordagem light à literatura fantástica. Nota-se nos contos de Rui Zink e Clara Pinto Correia, e é perfeitamente assumida no puro nonsense de Manuel João Vieira. Surpreendeu a contribuição de Luísa Costa Gomes, uma autora que eu imaginava a anos-luz (trocadilho propositado) das literaturas fantásticas, com um conto assumido como uma juvenilia, etiqueta que caracteriza bem a percepção cultural sobre a literatura fantástica.

É talvez mal nacional este desinteresse pelo que ultrapassa a normalidade, nos faz pensar em frente, desperta a luxúria pelo futuro, que para passar do imaginário ao real só necessita da nossa vontade e engenho. É um estado de alma nacional, e não creio que chuvas de computadores ou programas governamentais de intervenção o possam, algum dia, mudar. Registos como o Ficções Científicas e Fantásticas ou outras obras semelhantes afirmam que em portugal ainda há vontade de fazer qualquer coisa diferente.

terça-feira, setembro 24, 2013

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Uma visita ao fecundo reino da mininarrativa portuguesa

Corria o ano de 1984, e a Rolim estava no segundo ano da sua Coleção Fantástico, uma coleção de livros quase sempre bastante curtos, onde se misturavam velhos clássicos do fantástico português, muitos deles republicados da Antologia do Conto Fantástico Português, com obras contemporâneas. O âmbito era o de um fantástico mais chegado ao mainstream, com pouca tolerância para coisas mais esquisitas. A ficção científica, por exemplo, praticamente não tinha nela lugar. Mas o insólito tinha, o surrealismo também, e uma certa espécie de horror igualmente.

É aí que se enquadra esta A Condecoração de Orlando Neves. Um livro finiho, apenas com 55 páginas, que apesar disso se subdividem em 20 pequenas histórias, com tamanhos entre o mini-conto e a vinheta. Mário-Henrique Leiria é nelas uma influência clara, quer no tocante à dimensão, quer no que diz respeito a toda a abordagem literária: o pendor pela ironia, o surrealismo de alguns deles, o macabro de outros (ou dos mesmos), o insólito. E Orlando Neves, que foi, na literatura portuguesa, mais poeta do que contista, não é tão bom. Mas vamos por partes.

Literalmente. Falemos dos contos, embora sem entrar em grandes detalhes.

A Condecoração começa com... A Condecoração, uma vinheta insólita e macabra sobre uma peculiar condecoração oferecida a um brigadeiro por feitos de bravura em combate. É um continho que consegue ser arrepiante. Segue-se A Caridade, outro conto insólito e macabro que faz lembrar o ambiente das coisas do João Seixas publicadas no E-nigma. Vem depois O Carteiro, mais um continho insólito, ainda que desta vez não muito macabro, que se debruça sobre um carteiro sem vida própria.

Na sucessão de histórias chega em seguida O Natal, um pequeno conto algo surrealista sobre a inversão de papéis humano/não-humano. Um conto bastante bem construído. Depois, O Homem Apressado é um conto surrealista com toques de horror sobre um homem que se vai devorando aos poucos a si mesmo. Um Bom Pai é outro conto com toques de horror sobre o regresso a casa de um pai de família psicologicamente pouco estável. E A Sombra, é um conto fantástico sobre a morte. Todas estas histórias estão bem conseguidas.

Segue-se O Asseio, um conto muito pequeno que consegue a proeza de ser ao mesmo tempo surrealista, macabro e divertidíssimo. Digo-vos apenas que é sobre um nariz. Isso mesmo: um nariz. Muito bom. Também bastante bom é Os Pés, mais um conto insólito e algo macabro sobre um homem que meteu na cabeça que iria arranjar maneira de se ver todo e completo ao mesmo tempo.

Depois chega O Espelho, uma variação bem concebida daquelas histórias em que o espelho não se comporta exatamente como é suposto. E As Luvas, um conto subversivo sobre um presidente arrivista de que não gostei grandemente, pois a comparação com Mário-Henrique Leiria é inevitável, e neste tipo de conto o Mário-Henrique é imbatível. Mas melhora logo: A Mãe é um conto fantástico e bastante bom sobre um homem de meia-idade que se vê de súbito transplantado para a infância.

Em seguida chega A Fuga, um conto brilhante, o melhor de todo o livro, entre o surrealista e o horror, sobre um condenado que foge da prisão de uma forma inédita. Apetece contá-lo, mas não é possível: cada bocadinho adicional de informação que seja dado é um pouco do impacto do conto que se perde.

O Comboio é surrealismo puro, mas não gostei muito: pareceu-me que a ideia exigia um texto maior, talvez com o dobro ou o triplo da extensão. Os Destroços, é um excelente conto de fantasmas, em que o horror (embora bem-humorado) se exerce não sobre quem os vê, como o cliché manda, mas sim sobre o próprio fantasma.

Daqui para a frente, infelizmente, a qualidade geral cai um pouco. Por outro lado, já só faltam cinco histórias.

O Telefone é a primeira dessas cinco; trata-se de um conto fantástico em que a personagem telefona (obviamente) e do lado de lá lhe responde alguém demasiado parecido consigo mesmo. Deste não gostei muito: achei-o demasiado previsível. Segue-se A Redução, mais um dos pequenos contos de Orlando Neves que se situam entre o horror, o fantástico e o surrealismo. Aqui vamos encontrar uma gravidez anormal, e, embora outros contos do livro sejam melhores, este também não é mau.

O Feliz Parto é um continho insólito sobre uma mulher cujas sucessivas gravidezes redundam sempre em abortos. Obsceno, o penúltimo conto do livro é também o maior, mesmo sem ultrapassar a dimensão de vinheta. Nele, um enviado do Vaticano comete um faux pas divertido num país de usos culturais muito peculiares. Ambos estes contos estão bem conseguidos, mas nenhum dos dois é tão bom como histórias anteriores. Por fim, O Homicídio é um pequeno conto fantástico e irónico que se lê bem mas não é nada do outro mundo.

Como se vê, A Condecoração é uma coletânea que contém alguns contos muito bons e é em geral uma boa leitura, apesar de fraquejar um pouco para o final, o que, em meu entender, é sintoma de deficiente organização dos contos, pois o impacto de um livro de contos também depende da forma como começa e acaba. Insere-se numa abordagem literária que tem dado muitos e bons frutos em Portugal, e que ainda hoje tem seguidores, embora talvez mais entre os escritores do que propriamente junto do público, que se mostra em geral avesso a contos e mais ainda, por maioria de razão, a contos muito curtos. Estes costumam mesmo ser mais apreciados pelo público de poesia do que pelo de prosa. E muitas vezes é pena, pois os escritores portugueses têm jeito para este tipo de coisa, e este livro é um bom exemplo. É divertido, é arrepiante, por vezes faz pensar, está bem escrito. O que há para não se gostar?

Texto original, baseado em notas deixadas na Lâmpada Mágica em 2008.

sexta-feira, setembro 20, 2013

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Retrato de Barreiros enquanto verde autor

Mais de uma década antes de O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias, o primeiro livro "oficial" de João Barreiros, e meia década antes de outro João, o Aniceto, ter inaugurado a edição de ficção científica de língua portuguesa na Caminho com o seu romance premiado, Os Caminhos Nunca Acabam, saía para as mãos de uma seleta coleção de amigos, conhecidos e, provavelmente, alguns desconhecidos, uma ediçãozinha de autor com 34 páginas, feitas numa tipografia situada na mui distópica Reboleira Sul, embrulhadas numa capa pavorosa a preto e branco e divididas em dois contos: O Funcionário e O Sindroma do Pai Natal.

O ano era 1977 e Duas Fábulas Tecnocráticas, assim se chama o livrinho, marca a modesta estreia de João Barreiros na FC portuguesa. Modesta porque a edição é mesmo muito modesta, praticamente ao nível do que hoje qualquer um poderia fazer em casa com um computador e uma impressora barata. Modesta também porque o estilo do autor ainda não estava, nessa época, inteiramente definido. E modesta, ainda, porque passou quase completamente despercebida.

Estes dois contos, no entanto, são leitura muito interessante, quer para quem seguiu a trajetória do autor nos anos 80 e, principalmente, 90, quer para quem ainda não leu nada dele e quer ficar com uma ideia esquemática e bastante pálida daquilo que pode encontrar nos escritos de Barreiros.

É que nestes contos vamos já encontrar, embora em forma ainda algo bruta, muito do Barreiros posterior. Em O Funcionário encontramos violência extrema em cenário distópico e urbano, ao seguirmos o percurso de um assassino psicopático que mata mulheres grávidas num ritmo frenético, sem que se saiba bem por que razão não é apanhado. A tentativa de chocar o leitor é deliberada e propositada, como em toda a obra subsequente do autor. Já se nota a tendência para a referenciação subtil de toda uma atmosfera cultural onde Barreiros bebe, na qual a ficção científica, da mais intelectual à mais trash, é central. Os diálogos já têm a fluidez e caráter genuíno que são imagem de marca do autor. E etc.

No segundo conto, além da hiperviolência e demais características de O Funcionário, vamos encontrar um tema aparentemente obsessivo em João Barreiros: a desconstrução subversiva de todos os mitos de infância. Neste conto, é o Pai Natal o sacrificado (à semelhança de um outro conto, Noite de Paz, curiosamente o conto de Barreiros que foi mais vezes traduzido e publicado lá fora). De novo (sempre) em cenário catastrófico, de uma distopia hiperviolenta e total, O Sindroma do Pai Natal põe a nu a crueldade das crianças, atacando de passagem, mas sem contemplações, as pedagogias "boazinhas" que tratam os miúdos como seres fundamentalmente doces, por entre "carrinhas de eutanásia" enlouquecidas (a fazer lembrar o cliché das carrinhas de gelados dos filmes de terror série B) e corporações sem mais escrúpulos do que os necessários para salvar a própria pele.

Apesar de ser Barreiros em bruto, apesar de a edição, nas suas características físicas, ser horrível, apesar de necessitar de uma revisão profissional, o conteúdo deste livrinho consegue ser melhor do que muita da FC portuguesa publicada desde então. E isto não deixa de ter algo de deprimente.

Republicado, com alterações, do E-nigma.

terça-feira, setembro 17, 2013

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A Conspiração dos Abandonados



António de Macedo (2007). A Conspiração dos Abandonados: Contos Neogóticos. Sintra: Zéfiro.

O sentimento de abandono dá o mote deste livro de contos do escritor e cineasta António de Macedo, atrevido autor de uma vasta e única obra que tem no oculto e sobrenatural a inspiração para deliciosos voos de imaginação. Abandono, mas não no sentido de desprezo ou renúncia. Aqui abandono significa mistério oculto, esquecido pela passagem do tempo, empoeirado pelos lustres, reduzido a ruínas de pedras dispersas, fragmentos de histórias condenadas ao oblívio. Destinos imprevistos aguardam aqueles que incautos ou por determinação se cruzam com estes segredos esquecidos pelo tempo contados em seis sólidos contos que são ao mesmo tempo intrigantes, soturnos, excitantes e escritos numa linguagem clara que sublinha a dramaturgia cinematográfica de Macedo.

O Mosteiro Abandonado: Este primeiro conto de A Conspiração dos Abandonados recordou-me Jan Potocki e o seu Manuscrito Encontrado em Saragoça pelo seu lado de mistério feérico num ambiente peninsular. Durante a guerra da restauração uma tropa castelhana entra pelo Alentejo dentro para saquear aldeias e pilhar gado. Os soldados vão desaparecendo misteriosamente, engolidos um a um por um lodaçal, até que restam o capitão e o capelão, que procuram abrigo num mosteiro arruinado. Sendo acolhidos por uma bela e misteriosa anfitriã, depois de uma lauta refeição são levados a conhecer o mistério da casa: três fontes que podem conceder a juventude, o regresso à vida ou a imortalidade. Só se pode escolher uma, e o capitão escolhe a imortalidade. Após beber das águas, tem um vislumbre de uma outra realidade: emboscados por soldados portugueses junto à fronteira, o capitão e o capelão são as únicas vítimas mortais da escaramuça que coloca em fuga as tropas castelhanas. É um conto que se destaca por um onirismo tenebroso onde a magia revela facetas obscuras.

A Noiva Abandonada: É curioso o contraste com o conto anterior. Onde O Mosteiro Abandonado era obscuro com a sua ambiência de trevas góticas, esta é uma história luminosa, escrita com uma marcante clareza pictórica. Lê-se como um possível argumento televisivo, aventura fantástica em que três amigos arqueólogos lutam contra o espírito de uma monja amaldiçoada que tenta reencarnar no corpo da noiva de um dos amigos, numa corrida contra o tempo onde a ciência se alia ao ocultismo para derrotar forças malévolas. É curiosa a justaposição entre a banalidade arquitectónica do urbanismo de classe média alta e a riqueza simbólica dos locais arqueológicos imaginados.

A Cadeira Abandonada: Uma fábula negra, ensaio ficcional sobre o poder das ideias num conto irónico onde pôr a cabeça a funcionar leva literalmente à loucura. A aquisição de conhecimento rouba-nos a inocência, como mostra o mito da maçã nas mãos de Eva e aqui a cadeira que provoca ideias na mente de quem nela se senta.

O Códice Abandonado: Novamente, um conto cristalino de fantástico onde um velho professor de línguas com pendor ocultista se vê mergulhado numa corrida para salvar Lisboa de um devastador terramoto. O decifrar de um livro abandonado encontrado por um casal singular, em que ela é uma sílfide humanizada e ele uma reencarnação de um feiticeiro romano apaixonado pela sílfide há  mais de dois mil anos leva à descoberta de um segredo: forças ocultas sob o subsolo lisboeta utilizam o manuscrito secreto para sacrifícios telúricos, que se não forem cumpridos obrigam a violentos tremores de terra. Conhecido o segredo, resta ao singular casal aventurar-se nas arquitecturas fantásticas de uma cidade mítica que surge nalgumas noites de lua cheia num mouchão do Tejo para travar o relógio do tempo. Se o conto é uma aventura no fantástico de pendor ocultista e iniciático, é na descrição da cidade féerica que a luz lunar revela existir nas lezírias que a imaginação de Macedo mais se revela. Cidade de geometrias impossíveis e mecanismos intricados, deixa o leitor a imaginar um híbrido das arquitecturas lovecraftianas com o urbanismo poético de Calvino e o mecanicismo da relojoaria intricada.

O Caixão Abandonado: Conto de horror perfeitamente escrito, directo e tenebroso. Ao acordar, o amargurado jardineiro de um convento descobre um caixão no jardim que mal trata, e acaba por descobrir o real segredo do convento onde afinal as freiras já há muito faleceram e resta ao jardineiro ocupar o lugar que falta no sepulcro. Terror simples, eficaz e muito bem contado, uma brincadeira de mestre com o estilismo do conto clássico de terror com ambientes de mistério e finais surpreendentes.

A Cidade Abandonada: termina muito bem este livro de contos sobrenaturais com esta divertida história que consegue misturar mitologia suméria, a guerra no iraque e os mistérios históricos que alguns interpretam à luz das teorias dos antigos astronautas. Um grupo de arqueólogos portugueses desloca-se a ruínas iraquianas com uma intenção oculta: provar que certos artefactos misteriosos são vestígios de armas criadas por uma ciência antiga e avançada, interpretados pelos antigos sumérios como objectos mágicos. Ao penetrar nas ruínas, são arrastados no tempo para um passado longínquo onde assistem às lutas titânicas de seres de poderes incompreensíveis mas interpretáveis como aplicações de clonagem, armamento avançado e computação pelos olhos dos arquéologos perdidos numa cidade esquecida e num tempo antediluviano.

domingo, setembro 15, 2013

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Outro romance de estreia: o de Daniel Tércio

A Vocação do Círculo foi o segundo livro de ficção científica portuguesa (embora a esta designação devam ser por vezes acrescentadas aspas) a ser publicado na sua casa de eleição ao longo dos anos 80 e 90, a Editorial Caminho, e não se atrasou muito relativamente ao primeiro: o romance de estreia de João Aniceto, Os Caminhos Nunca Acabam. Editado no já longínquo ano de 1984, marca também a estreia de um dos autores mais interessantes da ficção científica e fantástico portugueses, embora a sua obra acabe por ser comparativamente escassa e, dada a sua ausência total há mais de uma década, pareça ter chegado ao fim, tendo-se o autor, Daniel Tércio, afastado do género quiçá definitivamente para se dedicar a uma carreira académica no âmbito da dança.

Mas enquanto durou foi interessante, e esse interesse surge logo no primeiro livro. De facto, e mostrando embora ainda alguma imaturidade estilística, A Vocação do Círculo é já um romance com alguma qualidade, e já revela as características principais do universo do autor, que seriam desenvolvidas com maior profundidade em livros posteriores. Nomeadamente: uma abordagem à ficção científica que tem mais de fantasista do que de científico, preocupações estilísticas bem marcadas e alguma fragilidade consistente nos remates das histórias.

Trata-se de um romance de realidades paralelas. Começa na Lisboa do nosso universo, ou pelo menos de um universo em tudo semelhante ao nosso, na qual o protagonista, Licínio Campos, descobre que tem um duplo que chega mesmo a usar o seu próprio nome. Os dois acabam por encontrar-se, trocam algumas explicações, mas tudo muda de repente quando se tocam e o Licínio original do universo em que a história começa se vê projetado para a Lisboa de um universo paralelo onde as coisas são em parte muito semelhante às que conhecia, mas por outro lado muito diferentes.

É neste universo paralelo que se desenrola a maior parte do romance. Aí, a ciência encontra-se bastante subdesenvolvida, mas em compensação a magia é corriqueira. Mas isso não impede que nesse novo universo existam duplos de muitas das pessoas que Licínio conhecia no universo de origem — e onde teria havido também um Licínio, cujo lugar ele acaba por ocupar, sem que se fique a saber lá muito bem o que lhe poderia ter acontecido. Esta é, adiante-se desde já, a mais séria falha lógica no enredo do romance... e a prova definitiva de que estamos em territórios algo distantes da ficção científica propriamente dita.

Na realidade, embora Tércio seja alguém corriqueiramente conotado com a ficção científica nacional, alguém que frequentou durante largos anos os círculos da FC portuguesa e esteve no grupo que deu origem à primeira associação portuguesa do género, a Simetria, a verdade é que a sua obra só muito raramente chega a ser inteiramente ciencio-ficcional. Já neste seu primeiro romance se aproxima mais de registos a que o mainstream literário chama seus, e o mesmo aconteceu em livros posteriores. A Vocação do Círculo é um romance bem mais próximo, quer pela sua temática, quer até pela abordagem literária que Tércio lhe dá, de alguns livros de Saramago, nomeadamente O Homem Duplicado, do que dos representantes mais sólidos da ficção científica portuguesa como o Terrarium, de João Barreiros e Luís Filipe Silva. É um romance fantástico, com algo de realismo mágico, uma forte dose de fantasia e só leves pitadas de FC e história alternativa, que transporta o leitor — e o protagonista — pela Grande Lisboa de três universos paralelos, cada um mais afastado do que o anterior daquilo a que a nossa sociedade entende por progresso, e que termina numa nota bucólica e conformista, em pleno paradoxo por esse conformismo vir de mãos dadas com um processo revolucionário, num tom de regresso a uma certa pureza da vida simples, pobre e sem ambições.

Com efeito, o tom superficial do romance é de rejeição do conhecimento e da ambição. Ficamos a saber ao longo do livro que todas as peripécias que Licínio sofre, todos os seus saltos entre universos, foram provocados por uma manipulação da "teia cósmica", algo em que não se deve mexer sob pena de desencadear terríveis consequências. É, pois, necessário derrotar os imprudentes — ou malvados, ou talvez arrogantes — que a tal loucura se atrevem, a fim de que o Cosmos e, em consequência, as vidas das personagens do romance, regresse aos seus eixos. Mas, paradoxalmente, esse regresso só é possível graças aos conhecimentos e à visão do mundo que Licínio traz do seu universo de origem, injetando assim conhecimento novo nos universos que visita.

Este carácter paradoxal é, talvez, a faceta mais interessante de uma história que, embora já mostre com clareza o potencial do autor, está todavia ainda longe daquilo que ele mostrou mais tarde. Um estilo ainda frágil já referido acima, diálogos pouco credíveis ou algo pueris, algum desequilíbrio na estruturação do romance e um fim que não está inteiramente conseguido põem este livro um patamar abaixo de Pedra de Lúcifer ou O Demónio de Maxwell. Embora seja leitura agradável, que não envergonha ninguém, não chega a ultrapassar a mediania.

Republicado, com alterações, de E-nigma (2007)

sexta-feira, setembro 13, 2013

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O Doutor Benignus

Quando foi relançado em 1994 pela Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), O Doutor Benignus, romance de Augusto Emílio Zaluar publicado originalmente em 1875, ganhou evidência na mídia e foi muito comentado pelos participantes dos fandom brasileiro. Foi considerado um trabalho de arqueologia da ficção científica brasileira, contemporâneo das aventuras científicas de Júlio Verne, das quais recebeu forte influência.
Zaluar nasceu em Lisboa em 1826 e não completou os estudo em medicina para dedicar-se ao ofício de escrever, principalmente na área jornalística. Migrou para o Brasil em 1850, estabelecendo-se como jornalista. Seus interesses nas ciências, especialmente na antropologia, o levaram a se dedicar aos estudos sobre o homem brasileiro, e Zaluar acompanhava atentamente os trabalhos das missões científicas no Brasil, e isso fica claro na leitura de O Doutor Benignus, pois o autor faz questão de citar cada um dos seus inspiradores, inaugurando junto com o gênero uma mania cada vez mais em destaque entre os autores brasileiros de ficção científica e fantasia.
A história acompanha o sábio Dr. Benignus, que decide não mais viver em meio à corte brasileira no Rio de Janeiro e retira-se para uma fazenda em Minas Gerais. Lá, além da família, apenas alguns empregados. Durante uma incursão a um trecho de mata próximo a sua residência, Benignus encontra um pergaminho com o desenho do Sol e uma inscrição desconhecida. Obcecado com o achado, realiza amplas pesquisas até descobrir que a inscrição, em língua tupi, quer dizer “Aqui há habitantes”. A descoberta incute no sábio uma grande necessidade de provar a habitabilidade de outros mundos e, para isso, organiza uma expedição científica ao Brasil Central. Juntam-se a ele o cientista francês M. de Fronville e o jovem inglês chamado Jaime River, que pretende encontrar o pai, o pesquisador William River, desaparecido numa expedição à mesma região.
A comitiva reúne dezenas de pessoas e viaja pelas matas, sempre descritas como belas e hospitaleiras, evitando as estradas e os povoados para não assustar as pessoas. Pelo caminho, enfrentam diversas aventuras, como uma forte tempestade, a travessia de rios perigosos, o ataque de um jaguar negro (quando acontece a única baixa da expedição), a exploração de uma caverna – onde encontram o crânio fossilizado de um homem pré-histórico –, a queda de um meteorito e um incêndio florestal.
Seguindo as pistas do pesquisador desaparecido, a comitiva passa por Uberaba, Santa Rita de Paranaíba, Goiás, Jurupensém, Leopoldina e a Ilha do Bananal, onde acontece o grande desfecho. Ali, os aventureiros encontram uma nação carajá, cujo chefe Koinamam confirma a posse do pai de Jaime, mas recusa-se libertá-lo. A tensão aumenta, mas ocorre um incrível golpe de sorte: da floresta surge um balão de ar quente, conduzido por James Wathon, cientista norte-americano amigo pessoal do Dr. Benignus, alterando o destino fatalista da expedição.
O Doutor Benignus está longe de ser um livro de ficção científica e mal pode ser comparado às aventuras vernianas que o inspiraram. Trata-se apenas do relato de uma viagem de intelectuais ao planalto central do Brasil, sem muito apuro realista. O Brasil selvagem de Zaluar é um lugar de campos abertos, florestas limpas e rios navegáveis, sinal claro de que o autor nunca deve ter feito sequer uma incursão à Mata Atlântica.
O Brasil de O Doutor Benignus não parece ter muitos problemas além das dúvidas existenciais que incomodam o sábio. Colonialismo puro, é apenas um enorme parque de diversões para intelectuais entediados. Não há nada no romance, por exemplo, a respeito de questões dramáticas de sua época, como a escravidão, o preconceito racial e o movimento republicano. Os próprios cientistas da expedição carecem de credibilidade, pois suas considerações são sempre citações de cientistas mais afamados. Zaluar talvez não estivesse mesmo interessado em realizar um relato científico, como acontece com a fc de forma geral, mas a ciência de O Doutor Benignus resume-se a essas citações. Apenas durante um breve delírio onírico, no qual o sábio dialoga com um ser luminoso supostamente vindo do Sol, o texto consegue estabelecer um clima favorável ao fantástico mas, sendo apenas um sonho, não pode ser ponderado nesse contexto. Contudo, percebe-se nele alguma vontade em ser fantástico na medida em que tem seu gérmen no papiro misterioso que, na interpretação do Dr. Benignus, sugere a habitabilidade do Sol e, em suma, era o que o ele pretendia provar com sua viagem ao Planalto Central, mas que não tem maiores significados na trama.
A edição da UFRJ é bem cuidada e, ainda que tenha atualizado a grafia, manteve os maneirismos do autor. O livro tem nada menos que quatro prefácios, sendo um deles um glossário com explicações das idiossincrasias textuais. Fecham o volume, um grande caderno de notas comentando as muitas citações, e um posfácio assinado por Alba Zaluar, provável descendente do autor, com uma leitura crítica que destaca a forma descomprometida com que Zaluar tratou as figuras da mulher e do negro.
Podemos, é claro, chamar à ficção científica o mérito pioneiro de O Doutor Benignus, da mesma forma que tomamos textos de muitos outros autores que nunca imaginaram que o que escreveram seria um dia adotado como registros históricos de um gênero. Mas é preciso ser um tanto criativo para encontrar ficção científica em O Doutor Benignus.

quinta-feira, setembro 12, 2013

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Uma máquina que voa através do tempo

Ao contrário do que possa pensar quem tem os olhos virados exclusivamente, ou quase, para as coleções de FC, o brasileiro Bráulio Tavares não publicou, em Portugal, só na coleção azul da Caminho, nem se limitou a editar entre nós as suas coletâneas de contos. Começou por fazê-lo, é certo, mas também produziu um romance, que os responsáveis da editora resolveram publicar em 1997 na coleção "Uma Terra sem Amos", coleção esta que se dedicava fundamentalmente ao mainstream, e na qual se editavam obras consideradas "mais literárias" do que as de FC.

Mas curiosamente, A Máquina Voadora está mais próxima da ficção científica do que algumas das obras incluídas na coleção de ficção científica. Refiro-me, entre outros livros, a Universal, Limitada, de Isabel Cristina Pires, ou aos de Terry Pratchett (As Três Bruxas e Mort).

Este romance de Bráulio Tavares, segundo o seu subtítulo, conta a "história do sapateiro Gamboa, e da sua maravilhosa máquina de voar". Nele, Bráulio regressa a um cenário que já tinha visitado pelo menos uma vez, quando contou a História de Maldun, o Mensageiro (conto incluído n'A Espinha Dorsal da Memória): a Serra do Calabouço, local inventado situado algures entre o sul de Portugal e a Andaluzia, na época em que cristãos ainda se iam cruzando com muçulmanos nesta zona do mundo.

A história que nos é contada é a do sapateiro Ramiro Gamboa, um homem que usa a sua arte para sobreviver mas tem os olhos postos muito longe dos seus horizontes rurais, um homem consumido por uma curiosidade insaciável que poucos conseguem compreender e que lhe condiciona uma parte significativa da vida. Gamboa sente-se fora do seu tempo, e tem visões de lugares muito diferentes, mas talvez não muito distantes.

A propósito da história de Gamboa, surgem também histórias protagonizadas por outros membros da família, especialmente o filho, Nuno, a sua mulher, Damiana, e o pai desta, Eleazar, um homem estranho que é, em muitos aspetos, semelhante a Ramiro, e ainda o pai deste, Jofre de seu nome.

Cruza-se também a história de Ramiro Gamboa com a da própria Serra do Calabouço e da cidade de Campinoigandres, também ela inventada, onde habita um grupo de nobres muçulmanos, núcleo central de uma espécie de sociedade secreta de protetores do conhecimento: os Pensadores.

Acabamos por descobrir que o conhecimento protegido pelos Pensadores tem em comum com aquele que Ramiro Gamboa persegue o facto de não pertencer ao tempo de ambos. Tudo acaba por desembocar na Máquina Voadora que dá nome ao romance. Esta fora inventada e construída por Jofre. Mas nunca é descrita com clareza, embora se sugira semelhante aos esboços de Da Vinci, ou até aos primeiros veículos voadores mais pesados do que o ar dos primórdios da aviação, no início do século passado.

Mas como haveria uma máquina voadora como aquela na Península Ibérica em plena época da Reconquista?

Viagens no tempo? Teria Jofre vindo do futuro? Ou teriam vindo do futuro os documentos em que ele se baseou para a conceção da sua máquina?

Não se percebe bem. O romance é ambíguo, e esse facto é causa de boa parte do seu fascínio.

De resto, trata-se de uma história muito bem construída e escrita, que em subtexto acaba por debruçar-se sobre a natureza do conhecimento, mostrando como ele é precioso, como encerra joias, e como pode ser também perigoso quando utilizado de forma inadequada. Uma história que prende o leitor aos mistérios que cria e vai desvendando, a pouco e pouco, nunca chegando, no entanto, a revelá-los por completo, deixando em vez disso que quem lê tire as suas próprias conclusões a partir das pistas que são espalhadas ao longo das quase 250 páginas que o livro tem de extensão. No ambiente, e também no tema, faz um pouco lembrar o Memorial do Convento, de José Saramago, embora a concretização seja muito diferente da deste êxito maior do nosso Nobel.

Uma coisa, entretanto, é certa: Bráulio Tavares é claramente um dos melhores escritores ligados à ficção científica de língua portuguesa, e este seu livro, talvez sem ser propriamente ficção científica mas não se afastando muito, é bem capaz de ser o seu melhor livro.

Republicado com alterações do e-zine E-nigma (2003)

quarta-feira, setembro 11, 2013

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Erotosofia

Quarto romance do escritor e cineasta português António de Macedo, Erotosofia foi publicado em 1998 pela Editorial Caminho, de Lisboa.
Conta uma história algo vinculada ao universo criado pelo escritor norte-americano H. P. Lovecraft (1890-1937) – notadamente aos Mitos de Cthulhu –, com um texto elaborado no estilo dos relatos oníricos do mestre do horror, porém com uma poética mais eficaz, uma vez que originalmente desenvolvida em língua portuguesa. Uma boa dose de humor personaliza o texto, escapando meritoriamente do pastiche comum aos que arriscam imitar o cavalheiro de Providence. O volume tem mais de 300 páginas e uma bonita capa, com um detalhe da pintura "O julgamento de Páris", de Watteau.
O romance inicia de modo delicioso, tal como uma história da mitologia grega, com a cena tórrida de amor entre deuses que, por descuido da luxúria, acaba gerando potestades monstruosas. Daí, passa aos problemas dos administradores cosmogônicos – cada um mais estranho que o outro devido a suas existências em onze dimensões –, dedicados a dificultar o avanço das hordas demoníacas quando, em seus domínios, surgem, do nada, dois seres humanos.
A história gira em torno dessas duas pessoas: Irene, uma jovem e mal-amada agente de seguros que é enviada, às vésperas do Natal, à pequena vila de Monte Maior para resolver um problema burocrático, e Ricardo, respeitável professor de Monte Maior, estudioso de mitologia, que enfrenta estoicamente um casamento fracassado. Ambos acabam encontrando na infelicidade do outro o complemento para suas vidas vazias.
Mas o que pode sugerir uma história rosa de amor, vira um pandemônio nas mãos de Macedo. A presença dos Mitos de Cthulhu é apenas um detalhe entre um emaranhado de situações surrealistas. Irene e Ricardo, na busca pela verdade sobre o desaparecimento e possível morte de um velho esquisito há exato um ano, acabam devorados por uma singularidade mágica que, em todas as noites de Natal, surge no alto de uma colina assombrada: a abertura, em plena rocha, revela uma caverna repleta de objetos apenas sonhados pelos homens. Mas ela se fecha em 36 segundos, não permitindo ao visitante tempo maior que o necessário para apenas admirar o tesouro, o que ninguém consegue cumprir... nem mesmo nossos infelizes heróis, é claro.
Começa então o torvelinho de acontecimentos que passam do absurdo ao cômico, do terror a ficção científica, quando Irene e Ricardo são levados à presença dos administradores cósmicos e, com
isso, desestabilizam a estrutura do universo ao ponto de permitir a invasão da Suprema Ponte de Comando por hordas de monstros, justamente quando os supremos administradores aguardam a geração de uma molécula perfeita... E como loucura pouca é bobagem, com todos os problemas que causaram, os heróis apaixonados voltam à Terra cada qual no corpo do pior inimigo do outro...
Macedo constrói toda essa cosmologia para contar sua história de amores e desamores, emulando humor e tragédia em doses perfeitas. Apresenta personagens marcantes e bem construídos que, ao final da história, nos convidam a releitura, só pelo prazer de desfrutar de suas companhias. Acima de tudo, apresenta uma estrutura madura de fantasia portuguesa, moderna e tradicional ao mesmo tempo.
A ficção científica (e o horror e a fantasia) de cada povo têm que encontrar seu caminho particular. A fantasia de Macedo ecoa a antropofagia brasileira, devorando a influência estrangeira, digerindo-a e regurgitando uma arte repleta de personalidade lusitana. Erotosofia é o produto acabado da antropofagia portuguesa. Uma lição para todos nós, leitores e autores da arte fantástica em língua portuguesa.

terça-feira, setembro 10, 2013

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Eurico O Presbítero

O sibilar das rajadas também cessou completamente. Parado sobre a face da terra, o ar era semelhante ao lençol do finado a quem recalcaram a gleba que o cobre, frio, úmido, pesado, sem ranger, sem o movimento, cosido sobre o peito, onde acabou o bater do coração e o arfar compassado dos pulmões.
Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuíssima foi avultando pouco a pouco, derramando-se pelo horizonte e repintando a abóbada imensa dos céus.
Depois, esse clarão sinistro reverberou na terra: as cimas agudas, dentadas, tortuosas, alvacentas das fragas marinhas tinham-se abatido e livelado, como os cerros informes de neve amontoada, que, derretidos nos primeiros dias do estio, vão, despenhando-se, formar um lago chão e morto na caldeira mais funda do vale fechado.
Tudo a meus pés era um plano uniforme, ermo, afogueado, como a atmosfera que pesava em cima dele: e, além, jazia o cadáver do mar.
Eu, o Silêncio e a Solidão éramos quem estava aí!


Parece estranho iniciar a participação neste espaço com um romance aparentemente afastado das ficções científicas, especulativas e fantásticas. Tem o seu quê de provocação. Alexandre Herculano tem obras que se inserem mais facilmente nestes géneros do que esta, como se observa pelos contos coligidos nos dois deliciosos volumes de Lendas e Narrativas com o seu um manancial de histórias fantásticas. Escolhi recordar este Eurico o Presbítero pela capacidade que este livro algo esquecido tem de transcender géneros, mergulhando o leitor numa ficção medievalista escrita com precisão histórica, descrita numa linguagem vívida. O que nos livros de história são parágrafos com uma certa aridez ganha nas mãos de Herculano inegável força narrativa. O facto histórico, mitificado pela imaginação do autor, ganha vida nestas páginas.

Na continuidade temporal das ficções dos géneros fantásticos o romance de aventura, pulp, histórica ou rocambolesca, tem sido uma constante. Hoje géneros como o capa e espada ou a gesta cavalheiresca estão esquecidos ou encontraram nova encarnação nas fantasias medievalistas, mas o seu papel de influência histórica reflecte-se nos temas e estruturas narrativas do género. Herculano está firmemente inserido no cânone da grande literatura portuguesa, afastado pelo nosso carácter periférico desta linha contínua de influências que vai dos romances medievais aos autores contemporâneos de fantasia passada em mundos fantásticos de sabor medieval. Os seus romances históricos, dos quais este é talvez o mais fascinante, partilham da mesma fonte que animou Walter Scott. Este poderia dar um belíssimo filme. É um romance cavalheiresco sem elfos e orcs, mas cairia perfeitamente dentro do imaginário cinematográfico à volta do qual rondam filmes como O Senhor dos AneisTróia ou Alexandre. Filmes exaltantes, onde as emoções de antanho, quer da antiguidade real ou imaginária, se recontam em imagens apaixonantes.

Alexandre Herculano foi uma das figuras maiores do século XIX português. Escritor e historiador, também se distingiu pela sua participação nas convulsões políticas da atribulada primeira metade do século XIX. Como romancista insere-se no romantismo, corrente literária que galvanizou a Europa do século XIX e que introduziu em Portugal através dos seus romances históricos. Estes são uma extensão lógica do seu trabalho como historiador, distinguindo-se pelo seu rigor histórico e carácter profundamente medievalista. Herculano buscava as raízes da portugalidade, procurando a confluência histórica dos primeiros tempos da nação, mitificando-a através da sua prosa rebuscada e hiperbólica, típica do sturm und drang do cânone romântico.

- Cristo e avante! - bradaram os godos: e os esquadrões de Roderico precipitaram-se ao encontro dos muçulmanos. São como dois bulcões enovelados, que, em vez de correrem pela atmosfera nas asas da procela, rolam na terra, que parece tremer e vergar debaixo do peso daquela tempestade de homens. O ruído abafado e bem distinto do mover dos dois exércitos vai-se gradualmente confundindo num som único, ao passo que o chão intermédio se embebe debaixo dos pés dos cavalos. Essa distância entre as duas muralhas de ferro estreita-se, estreita-se! É apenas uma faixa tortuosa lançada entre as duas nuvens de pó. Desapareceu! Como o estourar do rolo de mar encapelado, tombando de súbito sobre os alcantis de extensas ribas, as lanças cruzadas ferem quase a um tempo nos escudos, nos arneses, nos capacetes.

Publicado em 1844 este romance histórico que vai beber a sua inspiração a uma época mais antanha do que a idade média portuguesa. A acção deste romance de perder o fôlego passa-se nos tempos da conquista árabe da península ibérica, com os reinos visigodos que se ergueram após o império romano a cederem perante a força das armas dos exércitos mouros.

Eurico, o Presbítero narra a torturada história de Eurico, presbítero de Carteia, pequena aldeia à beira daquele que é hoje conhecido como o penedo de Tárique. Este nem sempre foi um humilde e angustiado presbítero de paróquia isolada. Noutros tempos, mais gloriosos e luminosos, foi nobre e corajoso guerreiro ao serviço da coroa visigótica. A nobreza não lhe conferiu muitas posses e a sua paixão por Hermengarda, filha da alta nobreza goda é destruída pelo pai desta. De amores desfeitos, Eurico abandona a vida da corte e da espada, abraçando a vida eclesiástica. Este é um presbítero amargurado, que consome a sua dor interior em cânticos poéticos exaltados e em longo passeios pela paisagem selvagem dos rochedos de Gibraltar.

Algo se pressente no ar, os ventos de tempestade levantam-se. Uma onda abate-se sobre a Ibéria visigótica. Os exércitos árabes invadem a península, aliados a facções que disputam a coroa visigótica. No meio deste turbilhão de sangue e chamas, do refulgir das espadas e dos confrontos destruidores entre ferozes exércitos, Eurico pega em armas. Os anos de sacerdócio não lhe haviam apagado o amor pela pátria. Na sua hora de maior perigo não se recusa ao combate. Faz a sua aparição na mais decisiva das batalhas, Guadalquivir, onde o embate entre exércitos culmina numa aterradora derrota que faz cair o reino visigodo. Eurico é um misterioso cavaleiro negro, capaz de sozinho deter legiões mouras, e que vê desesperado a traição dos seus companheiros fazer cair a pátria pela qual tanto sangue derramou. Estes são factos históricos, aprendidos friamente nos bancos da escola, aos quais a mitificação de Herculano dá o sopro da vida, da grandeza, da traição, da violência e da morta em páginas de prosa grandiosa e apaixonante.

Séculos após a poeira apagar os traços das sangrentas batalhas, conhecemos a história e tradições herdadas da época árabe. Sabemos da queda dos reinos bárbaros às mãos mouriscas, das luzes da civilização do Al Andaluz, da queda desta às mãos dos reinos da reconquista cristã, saída directamente da resistência dos últimos nobres visigodos, refugiados nas altas serranias das Astúrias. Mas este é um romance desesperado, que nos conta a história dos derrotados. Eurico é um personagem da época, sublimemente retratado. Com a alma torturada pelo desgosto de amores, ainda acredita na sua pátria, mas cada novo embate, cada novo passo, trás consigo derrota e aniquilação de tudo o que sempre conheceu e admirou. À boa maneira dos personagens românticos, Eurico trilha o caminho entre a loucura e o desespero, enquanto se ergue contra vastas forças, maiores do que a pequenez da sua humanidade.

- Dez anos! ... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um instante e, depois, desfechar do céu nas profundezas do nada? Sabes o que é caminhar sobre silvados pelo caminho da vida e achar ao cabo, em vez do marco miliário onde o peregrino de tréguas aos pés rasgados e sanguentos, a borda de um despenhadeiro, no qual é força precipitar-se? Sabes o que isto é? É minha triste história! Estrela momentânea que me iluminaste, caíste no abismo! Arbusto que me retiveste um instante, a minha mão desfalecida abandonou-te, e eu despenhei-me! Oh, quanto o meu fado foi negro!

Hermengarda, a paixão de Eurico, é capturada por mouros após um tétrico momento. É possivelmente a passagem mais perturbadora do romance, numa abadia em que as religiosas preferem a morte ao cativeiro. Eurico oferece-se para a resgatar, e consegue-o, numa operação heróica digna das maiores gestas de cavalaria, que culmina com um exército mouro às portas das serranias asturianas, onde Pelágio, irmão de Hermengarda, lidera a resistência à invasão àrabe (que mais tarde originará a reconquista cristã). Aí, nas profundezas das cavernas da montanha, Eurico revela o seu segredo a Hermengarda, apenas para se deparar com um obstáculo inultrapassável. Qualquer esperança de felicidade é anulada pelo sacerdócio, ao qual Eurico é tão fiel como ao seu amor por Hermengarda e ao seu amor pela pátria. Tolhido, desesperado, Eurico oferece-se à morte num combate desesperado, enquanto Hermengarda enlouquece.

Os sentimentos exacerbados são dominantes nesta obra atravessada por duas correntes profundas de fidelidade - a fidelidade à pátria e a fidelidade à religião, os grandes motores por detrás desta trágica história.

Este é um romance que tem dentro de si todos os ingredientes românticos. Todo o ambiente a oscilar entre o belo e o horrível, toda a exaltação de sentimentos e emoções, as descrições majestosas, que tiram o fôlego ao leitor, os cumes filosóficos de extremos incomensuráveis, o desespero do momento histórico escolhido pelo livro. Toda a prosa acompanha estes sentimentos, tornado Eurico, o Presbítero numa obra empolgante e apaixonante.

Quem não conhece este livro será certamente surpreendido. Os amantes do fantástico ou do romance histórico encontrarão prosa digna das mais empolgantes obras do género, com momentos de profunda erudição que a tornam complexa aos nossos olhos modernos. O seu carácter canónico e imposições de obrigatoriedade de leitura escolar das obras provavelmente afastam leitores do prazer de mergulhar sem receios nas ficções de Herculano. Recomenda-se particularmente aos fãs de ficções medievalistas como símbolo de um género que influencia ficções modernas na linha que vai de Lord of the Rings a Game of Thrones. É certo que Eurico o Presbítero não tem dragões nem tronos disputados. Não tem encantamentos e feitiçarias, ou criaturas míticas. Os seus castelos não são arquitecturas de efabulação, a sua geografia não é imaginária. Mas no seu cerne é um romance de cavalaria puro, onde um herói de espírito puro e espada afiada é levado num périplo iniciático onde objectivos difíceis e amores impossíveis moldam a alma.

Livro canónico, é facilmente encontrado em diversas colecções editoriais. Ou então visitem o projecto Adamastor e descarreguem a edição de domínio público em epub. Pessoalmente recomendo esta via. Há um certo frisson de hipermodernidade futurista em ler palavras escritas no século XIX que nos remetem para o século VI num leitor de ebooks ou tablet.

segunda-feira, setembro 09, 2013

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Os Dois Lados da Moeda, Mas Não na Mesma Moeda...

Eis o tipo de tesouros inesperados que tornam os alfarrabistas em recursos insubstituíveis...

Numa pilha de velharias estrangeiras, entre outros volumes descartados e envelhecidos, encontro este Star Well, um romance de Alexei Panshin. O autor não é mau, mas a obra passou à história e a capa não inspira mais do que uma curiosidade passageira:


Na contracapa, um argumento característico da FC púlpica, embora tivesse sido publicado nos anos 70:


Contudo, abre-se a primeira página e ouve-se o primeiro acorde da banda sonora: suspense...


No rodapé, a indicação do principal (único) agente literário português em actividade há 40 anos, sob o que pode ser o carimbo de um contraparte estrangeiro nos EUA.

Em cima, alguém terá tido o trabalho de inscrever anotações... variações sobre uma designação... será... o título em português?

Um número... será o de uma colecção?...

A pilha ao lado contém números antigos da Argonauta. Será que...


Incrível!...

Veja-se a página de título, para retirar dúvidas (repare-se na confirmação do número 166):


Poderia aquele ser o exemplar usado pelo tradutor da obra para publicação na Argonauta? Poderia ter sido usado pelo próprio Eurico da Fonseca?

Folheie-se a edição original. No interior, mais variações sobre o título. Aparentemente, deu algum trabalho. Contra a crença comum, se calhar não era assim tão fácil obter as traduções genéricas, desapaixonadas e distantes que enchem os volumes da colecção...


E aqui, como noutras páginas, uma marca de leitura ou, mais certo, de pausa no trabalho de tradução:


Eis a prova, como se fosse necessário obtê-la, de que a curiosidade bibliófica não se pode contentar com a superfície nem com o conhecido, e que requer alguma investigação adicional. Por outras palavras, mesmo para as edições antigas, convém passar ao lado da capa e dos sumários e não descartar o que parece irrelevante.

Sem dúvida, uma fortuita coincidência, a tempo da publicação iminente do meu artigo sobre a colecção Argonauta no número inaugural da Bang! versão brasileira (em breve, também na versão portuguesa).


Que outros segredos encerrará o Baú da FC?...

domingo, setembro 08, 2013

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O epifenómeno Artiauri

Um belo dia de 1997, Ana Godinho apareceu nas letras portuguesas com um romance chamado Artiauri. Não se sabe se estaria nevoeiro nesse dia, se haveria uma névoa a cobrir os lugares por onde a autora passou, mas o que é certo é que ela tão depressa apareceu como se desvaneceu de regresso ao sítio de onde veio, nunca mais tendo aparecido o seu nome nos círculos da ficção científica e do fantástico. A dar conta da sua passagem pelas literaturas da imaginação ficou apenas um romance com um título esquisito. E, em geral, pouco mais: um par de traduções, uma coautoria numa publicação de cariz académico e outra num livro infantil.

Artiauri passa-se num planeta distante, habitado por duas espécies de seres inteligentes: uma, humanoide, é composta pelos descendentes de uma nave que chegara muitas gerações antes, proveniente de um mundo destruído numa catástrofe natural, uma autêntica arca de Noé espacial que serviu (e continua a servir) como repositório do conhecimento da espécie e como fonte de organismos biocompatíveis com a espécie que a construiu, os artiauri. Mas no tempo que passou desde a sua chegada ao planeta, os artiauri regrediram até um estado de civilização dominado por tabus e superstições, para o que muito terá contribuído, decerto, o facto de serem dotados de uma série de capacidades extra-sensoriais: telepatia, telecinese, precognição, enfim, o arsenal completo.

A outra espécie é aracnoide, nativa do planeta e de civilização recente, subjugada por um dimorfismo sexual acentuado (e "di-intelectualismo sexual" mais acentuado ainda — só os machos são inteligentes, o que não deixa de ser curioso se tivermos em conta que a autora é mulher) e ciclos reprodutórios incontroláveis. As fêmeas, apesar de estúpidas, são fortíssimas telepatas e um perigo para os machos que tenham o azar de cair sob o seu domínio (à boa maneira das nossas aranhas). Chamam-se vulturs e, além de se dividirem em machos e fêmeas, também se dividem em raças, uma das quais se encontra em plena expansão.

É esta expansão de uma das raças de vulturs que vai desencadear os acontecimentos descritos no romance, ou seja, a luta dos artiauri pela sobrevivência.

A premissa é interessante, mas o diabo está nos pormenores. E não é sempre assim?

Ana Godinho escolheu não escrever ficção científica propriamente dita mas sim aquilo a que nos círculos anglófonos se chama sicence fantasy, uma espécie de híbrido que mistura elementos de FC e de fantasia, muito presente nas obras de Marion Zimmer Bradley, Anne McCaffrey, Andre Norton, Joan D. Vinge, etc. E fê-lo, aliás, de uma forma bastante típica, ao situar a sua história num planeta distante onde espécies alienígenas (mas muito semelhantes a nós em quase tudo) são dotadas de capacidades mágicas e místicas. Note-se que esta escolha é perfeitamente legítima, mas tem um problema: desagrada aos mais puristas leitores de FC (e também de fantasia), que encaram esta hibridização mais como uma bastardização dos géneros do que como algo que possa trazer alguma inovação.

Apesar disso, se o livro tivesse sido bem concebido poderia ter sido bem acolhido. Infelizmente, Ana Godinho cometeu alguns erros graves que prejudicaram em muito este seu primeiro (único?) romance.

De longe o pior desses erros foi o modo como tentou dar um fundo alienígena à história não através da descrição de ambientes e vivências, mas sim pela invenção e utilização intensiva de palavras que tornam a prosa totalmente impenetrável caso não se recorra a um glossário.

É evidente que o neologismo é uma das características principais da FC e literaturas relacionadas, precisamente porque ao criar conceitos estranhos à experiência humana não existem palavras ou expressões que os designem. Assim, a FC tem de inventá-las e, quando a sociedade ou a ciência evoluem em sentidos que a ficção científica já explorou, não é raro que esses bizarros neologismos acabem por se integrar quase impercetivelmente no discurso quotidiano.

Mas isso é uma coisa, e outra bem diferente é esconder a falta de imaginação ou de técnica de criação de ambientes por trás de neologismos totalmente desnecessários. Para que fim se substitui "unidade familiar" por "toro"? Ou "engano" por "cacha"? Não há qualquer justificação, e muito menos quando estas palavras formam uma parte tão importante do texto.

Esta floresta impenetrável de neologismos prejudica seriamente a fluidez da leitura e, em consequência, o destrute da história. Também torna mais patentes os outros defeitos de que o romance sofre, como algumas oscilações na qualidade do português e uma estrutura global que nem sempre está particularmente bem conseguida (há trechos bastante dispensáveis e chatos, a conclusão é deixada tão em aberto que mais parece um fim de capítulo ou um gancho para uma sequela, etc.).

Seja como for, é preciso ter em conta que se trata de uma primeira obra e, com isso em mente, há que reconhecer que Artiauri mostra que a autora teria potencial para fazer bem melhor depois do primeiro romance, uma vez corrigidas todas as falhas e erros de que este padece. E talvez seja pena que isso não tenha acontecido.

Republicado, com alterações, do e-zine E-nigma (2003).

sábado, setembro 07, 2013

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O primeiro choro do recém-nascido

Nasce aqui, neste momento, o Baú da FC, um novo espaço dedicado à ficção científica e fantástico em língua portuguesa. Bem-vindos. A explicação completa do que cá nos traz pode encontrar-se aqui, mas em versão resumida posso dizer-vos que embora já existam, e ainda bem, muitos espaços dedicados às últimas novidades, a alguma divulgação e análise de obras recentes, não há os suficientes onde se resgate a um certo esquecimento aquilo que se fez e disse há algum tempo. Que faltam sítios onde contrapor ao imediatismo da internet algum sentido de profundidade no tempo, em especial se dedicados em exclusivo, como é o caso, à FC, fantasia, terror e géneros conexos produzidos em língua portuguesa.

Da equipa pouco falarei porque está longe de estar completa. Ainda há convites por fazer, convites à espera de resposta, provavelmente até convites por imaginar. Direi apenas que são pessoas que têm suficientes anos disto para possuírem o tipo de raízes que procuramos aqui desenvolver. Pessoas que têm vindo a produzir conteúdos ao longo dos anos, com consistência, e que portanto têm, na maioria dos casos, material já pronto para ser recuperado. Pessoas que, de certa forma, possam funcionar como arqueólogos, trazendo à superfície artefactos enterrados sob as camadas das novidades mais recentes.

Isto, bem entendido, após esta introdução. E talvez mais algumas, pois é mais que provável que vários de nós tenham algo a dizer sobre o baú da FC e como o entendem.

Seja como for, achamos o trabalho que nos propomos fazer útil e interessante. Esperamos que sintam o mesmo.

Até já.